*Gustavo Werneck
Não existe receita para enfrentar o isolamento social determinado pelas autoridades em tempos de pandemia do novo coronavírus, mas alguns ingredientes são fundamentais para a convivência. Quem entende bem do assunto são as pessoas que vivem em sistema de clausura. Se as comunidades religiosas se abriram para o mundo nas últimas décadas, hoje o medo do novo mal conduz de novo ao recolhimento absoluto e a portas e janelas trancadas, à espera de novos dias. As razões mudaram, mas a clausura é a mesma. E o que antes tinha ares de penitência, hoje virou medida de autoproteção.
‘Prisioneiras do amor de Deus’ – A madre Maria Imaculada de Jesus Hóstia, abadessa do mosteiro Nossa Senhora da Conceição de Macaúbas, na zona rural de Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, acredita piamente na obediência como melhor maneira de enfrentar a quarentena para quem não está acostumado ao isolamento. “É preciso ficar em casa, seguir o que as autoridades falam”, diz a religiosa, lembrando que a obediência é um dos votos feitos ao ingressar na Ordem das Concepcionistas, à qual pertencem.
“Sabemos muito bem como é isso, pois somos prisioneiras do amor a Deus, numa vida de oração e recolhimento.” Para a abadessa, outro aspecto muito importante é a paciência. “Muitos consideram um martírio ficar em casa. Precisamos exercitar tanto a paciência quanto a confiança em Deus, bem como respeitar a natureza. Vivemos numa região cercada de matas, perto do Rio das Velhas. Neste momento, é fundamental procurar entender a natureza humana, e viver em harmonia, principalmente em família. Não ofender os outros é essencial.”
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A tradicional missa da manhã de domingo, que enche a capela do mosteiro, está suspensa, e a hospedaria, vazia. As 17 irmãs, muitas idosas, não saem ao portão, que agora vive fechado. Por trás dele, o silêncio impera. “Fizemos uma campanha para ajudar com alimentos famílias da região. O motorista que nos atende está resolvendo tudo para nós”, conta a abadessa através da “roda”, uma parte giratória de madeira que, ao longo da história tricentenária do mosteiro, fez a comunicação com o mundo aqui de fora. Num texto escrito a lápis, a madre relata que crer na “fé, ter confiança na misericórdia de Deus, esperança e caridade” é a receita para vencer o mal.
Em campanha (Abrace Macaúbas) pelo restauro da construção colonial, a abadessa lamenta que os serviços estejam parados, diante das atuais circunstâncias. “Mas vamos continuar. Maria passa na frente!”, repete, em súplica a Nossa Senhora, a frase que se tornou seu lema.
História tricentenária – Quem conhece o mosteiro de Macaúbas já viu, na entrada principal, a palavra “Clausura”, que se destaca perto da pintura que retrata um personagem fundamental nesta história: o eremita Félix da Costa, que veio da cidade de Penedo (AL), em 1708, pelo Rio São Francisco, na companhia de irmãos e sobrinhos.
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Demorou três anos para chegar a Santa Luzia, onde construiu uma capela dedicada a Nossa Senhora da Conceição, de quem era devoto, início do que se tornaria o complexo religioso. No século 18, quando as ordens religiosas estavam proibidas de se instalar nas regiões de mineração por ordem da Coroa portuguesa, e havia apenas dois recolhimentos femininos em Minas: o de Macaúbas e um em Chapada do Norte, no Vale do Jequitinhonha.
Tais espaços recebiam mulheres de várias origens, as quais podiam solicitar reclusão definitiva ou passageira. Assim, os locais abrigavam meninas e mulheres adultas, órfãs, pensionistas, devotas. Algumas se estabeleciam temporariamente, para “guardar a honra”, enquanto maridos e pais estavam ausentes da colônia, ou ainda como refúgio para aquelas consideradas desonradas pela sociedade da época.
Macaúbas recebeu figuras ilustres, como filhas da escrava alforriada Chica da Silva, que vivia com o contratador de diamantes João Fernandes, em Diamantina. A casa na qual Chica se hospedava fica ao lado do convento. Como parte do pagamento do dote das filhas, Fernandes mandou construir, entre 1767 e 1768, a chamada Ala do Serro, com mirante e 10 celas (quartos para as religiosas).
Em 1847, o recolhimento passou a funcionar também como colégio, tornando-se um dos mais tradicionais de Minas. Essa situação durou até as primeiras décadas do século 20, quando a escola entrou em decadência, devido à chegada de congregações religiosas europeias com grande experiência na educação de meninas.
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Já em 1933, a construção passou a abrigar o mosteiro da Ordem da Imaculada Conceição, funcionando em sistema de clausura, em que as religiosas têm pouco contato com o mundo exterior. Muitas vezes, era preciso ordem do papa para uma freira ir a uma consulta médica. A partir do Concílio Vaticano II (1962-1965), algumas restrições foram flexibilizadas.
Veja o quão extraordinário é o Mosteiro de Macaúbas:
Hoje em dia, elas podem ser vistas durante a missa na manhã de domingo, e sair para votar nas eleições, consultas médicas, resolver problemas administrativos, participar de reuniões da ordem ou fazer cursos de espiritualidade.
*O jornalista Gustavo Werneck escreveu este artigo para o jornal Estado de Minas.
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