Ana Maria Cavalcanti
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Aos 74 anos, a psicanalista Liana Pinto Chaves exibe um vigor invejável quando se trata de trabalho: todos os dias, ela dedica de oito a nove horas a atender seus pacientes, com idades entre 25 de 80 anos, e ainda reserva tempo para, uma vez por semana, participar de um seminário.
Formada em psicologia pela USP, com mestrado em Psicologia Social em Londres, Liana está em atividade há 40 anos, mas nem pensa em se aposentar. E conta que o fato de ter cabelos grisalhos só ajuda no trabalho: “curiosamente isso me dá um certo prestígio, valor, com alguns pacientes. Vai ver eu pareço mais ‘sábia’ talvez?” – brinca ela.
Nesta entrevista a Ana Maria Cavalcanti, Liana comenta, principalmente, sobre sua atividade como psicanalista, revelando que, depois de décadas atuando como profissional, pode dizer que os problemas das pessoas “continuam os mesmos, com a roupagem dos tempos em que vivemos.” Entre esses problemas, ela cita “a finitude, a impotência e o medo da morte em suas variadas expressões.”
A psicanalista também fala de como os pacientes aumentaram com o surgimento da pandemia, do momento difícil que o Brasil vive, do envelhecimento da população brasileira e do que “atormenta a alma humana.”
Leia a entrevista:
Pergunta – Quais são os problemas comuns que as pessoas que você atende trazem?
Resposta – Sensação de estarem perdendo o pé na vida, decepções amorosas, divórcios penosos, depressão, empobrecimento, estar perdido sem saber que rumo tomar, as queixas são variadas e, em geral, são o desencadeante da procura por análise.
Em seguida, vemos que por debaixo há toda uma vida com suas questões muito além desse desencadeante. Na pandemia houve um aumento muito grande da procura: depressão, medo de morrer, solidão, insegurança.
P – Depois de mais de 40 anos com consultório cheio, você diria que os problemas mudaram ou são os mesmos?
R – Psicanálise tem a ver com a condição humana. Isso sempre foi assim e acredito que fundamentalmente sempre será. Ela tem a ver com a descoberta da verdade sobre o que se passa em nossas mentes e também sobre a verdade quanto à nossa conduta.
A meu ver, os problemas continuam os mesmos, com a roupagem dos tempos em que vivemos. Freud escreveu um texto extraordinário em 1930, O Mal Estar na Civilização, que continua válido, sobre os constrangimentos que a criança bichinho sofre para se tornar um ser da cultura.
Fala-se em novas patologias, mas quando olhamos mais de perto vemos que elas já existiam, só não tinham esse nome. Por se darem no nosso tempo de vida, elas parecem muito mais demandantes.
P – Quanto tempo em média seus pacientes ficam em terapia? Saem por que acham que já estão bem ou porque você dá alta?
R – Psicanálise se mede em anos, é um processo de longo prazo, em aberto. Tem pacientes que ficam por 20 anos, às vezes até mais, a maioria um tempo menor, mas sempre de vários anos. Como não é uma ciência exata, quantificável, é difícil responder com números precisos. Tem pessoas que interrompem a análise abruptamente, em geral pela ativação de alguma angústia muito grande ou incompatibilidade com a analista quando um ponto mais angustiante é ativado. Existe alta, sim, ainda que o termo seja controverso, posto que não é um tratamento médico. Nesses casos, é uma decisão consensual da dupla, com uma percepção que deu, que está de bom tamanho, que as questões principais foram tratadas a contento, que houve mudança psíquica significativa. E com uma noção objetiva do que a análise conseguiu e do que não conseguiu.
P – A questão da alta: Quando ela chega? A Dra Nise da Silveira dizia que gente “curada” demais é muito chata. Concorda?
R – A alta chega quando as temáticas principais começam a se repetir, mas já sem grandes novidades. Podemos pensar na cura como a cura do queijo que atinge seu melhor ponto no auge do seu sabor, um processo. Entendo que a Dra Nise falava de gente curada demais como pessoas excessivamente adaptadas, engessadas, previsíveis, pouco ‘loucas’ no sentido criativo. Tem uma autora francesa que diz: curar de quê? De si mesmo? Ou seja, estou dizendo que a análise é um processo de autoconhecimento, é um ser apresentada a você mesma, familiarizar-se com você mesma, aceitar-se, reconhecer e propor-se mudar aquilo que te faz mal e que, em boa medida, é possível modificar.
P – O que é que mais atormenta a alma humana, décadas atrás e hoje?
R – Acho que é a finitude, a impotência, o medo da morte em suas variadas expressões, injustiça, relações abusivas, conflitos familiares, sofrimentos por viver na pobreza ou em regimes autoritários, sentir-se aprisionado em esquemas muito neuróticos. A lista é grande.
Defrontamo-nos com o desamparo essencial na base do humano em cada um de nós. Há que se levar em conta a violência da desigualdade social, do racismo, da migração, a violência e a intolerância de regimes autoritários, o patriarcalismo. Mas, acredito que tudo isso sempre existiu na história. No último século acompanhamos uma luta contínua pelos direitos humanos com conquistas expressivas.
P – Os homens, trazem problemas diferentes das mulheres? Aumenta a presença deles em seu consultório?
R – Atendo no momento um número semelhante de homens e mulheres. Já houve outros em que tinha mais pacientes mulheres. Sinceramente não sei como responder essa questão a contento de bate pronto. Claro, existe a masculinidade e a feminilidade com suas questões de base, mas eu penso mais em termos daquela pessoa específica, singular, com suas demandas.
P – Durante a pandemia, seu consultório funcionou normalmente? O que as pessoas traziam para você nestes anos de pandemia?
R – Tive muita procura durante a pandemia. Nunca pensei que eu iria começar uma análise à distância e, à medida em que a pandemia se prolongava, isso aconteceu. Não só eu fiquei com o consultório cheio, como também todos os colegas, até mesmo jovens terapeutas em início de carreira.
Os pacientes traziam seus problemas de sempre, porém muito intensificados pelo confinamento. A situação toda nos colheu de surpresa e a insegurança aumentou muito as fragilidades de cada um.
Crises conjugais, problemas com os filhos, principalmente os adolescentes, esse ambiente claustrofóbico que se criou, foram temas muito frequentes.
Agora, vejo outras questões, por exemplo, a exaustão causada pela pandemia e o sentimento de ameaça do retorno à vida social. Ou a sensação de que, a partir de agora, a vida terá que ser reequacionada. Houve muitas perdas, mas também algum ganho no sentido de termos que responder à realidade.
P – O fato de você ter 74 anos, estar com cabelo branco, atrapalha na profissão?
R – Não, curiosamente isso me dá um certo prestígio, valor, com alguns pacientes. Vai ver eu pareço mais “sábia” talvez? Esse fato também me permite ajudar os pacientes que têm que cuidar de pais idosos. E também ajuda a falar sobre o envelhecimento e, no limite, sobre a finitude.
P – Quais são os problemas que as pessoas da terceira idade trazem para você? Como é o sexo para elas – homens e mulheres?
R – Fundamentalmente o declínio da saúde e do corpo, o embate com o golpe narcísico do envelhecimento. Eu diria que o sexo vai escasseando, grosso modo. Por outro lado, mais mulheres se libertaram para o uso de vibradores, novos tipos de relacionamento, seja com parceiros seja com parceiras, com homens mais jovens. E tornou-se bastante comum ver a mobilidade das mulheres passeando, viajando em grupos, para lá e para cá, muito alegres com a sua autonomia.
P – Temos visto tanta violência no país. Em que medida a profunda crise econômica e política que o Brasil atravessa está afetando as pessoas?
R – Não está fácil viver no Brasil. Temos que gastar um tempo enorme nos ocupando dos escândalos diários, além das muitas coisas mais graves. Poderíamos estar fazendo coisas muito mais produtivas e interessantes e somos obrigados a gastar um tempão com esse circo, sofrendo esses desmandos, com uma sensação de frustração, raiva, impotência. Isso abate as pessoas. Quando me perguntam como vai? Costumo dizer eu vou bem, mas muito triste com o Brasil. Mas quero crer que em breve vamos ter uma virada. Não se vive sem esperança.
P – Como a senhora vê o rápido envelhecimento da população brasileira, num país despreparado para lidar com essa massa de idosos?
R – Esse não é um problema só do Brasil. A população mundial está envelhecendo e o ônus vai recair sobre os mais jovens. Claro que aqui, de fato estamos longe de um horizonte confortável para todos: os idosos e os que devem se encarregar deles. É preciso um novo pacto social.
P – Quanto tempo mais, você acha que vai continuar a atender? Não se cansou da loucura da humanidade?
R – Não sei dizer. Me indago, cogito, mas, por enquanto, ainda não respondi. É um work in progress que tem me acompanhado. Até os 80? E se eu ainda estiver em boa forma e tiver procura? Será que vou resistir à tentação de receber novos pacientes? Também preciso ter a devida consciência de saber parar quando isso se tornar necessário. É comum o perigo de não reconhecermos que já está na hora.
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