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Ai de Ti, Ipanema – é o títudo da crônica de Joaquim Ferreira dos Santos detalhando a decadência progressiva do famoso bairro do Rio de Janeiro.
Ipanema deve ser o único bairro no Brasil que, com tão poucos quarteirões, inspirou, não só músicas e poemas, mas um livro inteiro, de 451 páginas – Ela é Carioca: Uma enciclopédia de Ipanema, do brilhante Ruy Castro -, para cantar, principalmente, suas virtudes.
Joaquim Ferreira faz um jogo com Ai de Ti, Copacabana, livro de crônicas de Rubem Braga, um dos mais ilustres entre os tantos que escolheram o bairro para morar e lá viveram por muitos e muitos anos.
O autor lembra que a ONU anunciou há poucos dias que o mar vai subir 21 centímetros. E escreve: “Anota, Ipanema: os polvos atravessarão a Vieira Souto, os meros se entocarão na galeria do Fórum e os mais escuros peixes nadarão na garagem do Cap Ferrat. Anota, porque próximo está o tempo.”
Leia a crônica completa:
Ai de ti, Ipanema, porque chegaram os teus 130 anos, mas outros tantos não viverás. A ONU anunciou semana passada que o mar vai subir 21 centímetros e, anota, Ipanema – anota nos teus moleskines da Papel Craft, porque eu escrevo tanto sobre o que acontece como sobre o que vai acontecer depois: os polvos atravessarão a Vieira Souto, os meros se entocarão na galeria do Fórum e os mais escuros peixes nadarão na garagem do Cap Ferrat. Anota, porque próximo está o tempo.
Os cardumes passarão pela cobertura do Rubem Braga na Barão da Torre, subirão pelas franjas do Cantagalo e, do Berro D’Água, despejarão uma cachoeira de algas brancas sobre as tuas garotas douradas. Os tatuís de cabeça vermelha, ressentidos com o extermínio dos antepassados, voltarão carnívoros.
Ai de ti, Ipanema, porque já estava escrito desde que assumiste um nome que em tupi significa água ruim, e na semana passada, quando teus vândalos quebraram na Nossa Senhora da Paz a estátua celebrando a Glória, aí soou bem claro o sinal de que o mar vai cobrir teu sertão de decadências, de IPTUs alucinados, e por mais que uivai, clamai piedade, chegou a hora – vem aí a definitiva ressaca.
O Padre Jorge bimbalhará os sinos, o moço da kombi que compra muamba velha mudará a gravação para anunciar a novidade que veio dar na praia. Sim, é o que há de acontecer. As bicicletas desgovernadas sobre as calçadas onde antes flanava a paz de espirito, os cachorros soltos na areia, as amêndoas caindo feito bala perdida na careca de teus vovôs e o restaurante Artigiano que só aceita pagamento em dinheiro – tudo isso foi só um spoiler. Será pior.
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Os sarados espremidos nas cavernas da Smart Fit, os hóspedes que transam nas varandas do Fasano e os coelhos que os bêbados, em delirium tremens, viam passar entre as mesas no bar Zeppelin – ninguém aplaudirá o teu último pôr do sol.
Em 1894, o Barão que carregava teu nome comprou o lote entre o Pavão-Pavãozinho e o Jardim de Alah, a tudo chamou de Vila de Ipanema, e aos poucos chegaram a mulher de branco, o sorvete de jabuticaba do Moraes, o biquini asa delta da Rose di Primo, a Isadora Duncan dançando nua para o João do Rio e a churrascaria Carreta, onde Tom, Vinícius e Chico faziam a sesta deitados em cima da mesa. Ipanema era só felicidade.
Eis que, às vésperas de teu dia, nem toda a farmacopeia das 24 drogarias na Visconde de Pirajá será capaz de aliviar as dores dos males, as mordidas dos patinetes nos calcanhares, que agora te encerrarão o destino.
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Ai de ti, Ipanema das mesas na calçada, porque já não tens cinema, não vais ao teatro, e por isso a única música possível é a que já ouves vindo de entre as nuvens, o uivo de um sudoeste longo e frio. Aumenta o som e ouve. Esta é a tua última canção. Do obelisco hétero-top ereto na fronteira do Leblon até a raquete do Kamikaze, o professor de frescobol no Arpoador, sobre todo esse bairro de 37.992 moradores, 14.666 pets, o vento soprará a “Cavalgada das Valquírias” no lugar do “Parabéns”.
Ai de ti, Ipanema, e que tantos 130 anos depois, tudo ido, tudo desiludido, teu ilustre Millôr Fernandes ainda esteja certo, e pelo menos o mar continue brincando de paraíso em nossas portas.
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