O mais provável é que Lilian Pacce esteja certa quando diz que a máscara será a nova camiseta, no sentido de que incorporamos de vez essa nova peça do vestuário, introduzida pela epidemia do novo coronavírus. Como não há nem sinal que a pandemia esteja sendo contida, tudo mostra que nem tão cedo vamos nos livrar das máscaras.
Mas nesta interessantíssima entrevista que você vai ler abaixo, concedida a Cláudia de Castro Lima, para o Uol, Lilian Pacce fala de vários outros assuntos, inclusive de um robô que ela comprou para ajudá-la com o trabalho de casa. “Fiquei muito amiga do robô,” diz ela..
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Há três anos, cansada de ver blogueiras postarem o “look do dia”, a jornalista e consultora de moda Lilian Pacce propôs um desafio. Batizado de #1lookporumasemana, era uma reação à mania de algumas blogueiras, que ela considera “um absurdo, além de muito cafona”, de ficar trocando de roupa toda hora. A ideia era que as pessoas usassem a mesma roupa durante sete dias, mudando apenas os acessórios. “A gente não tem que lavar e passar tanta roupa, porque isso é desperdício da nossa energia, água, eletricidade”, diz Lilian.
O desafio, que continua fazendo sucesso no Instagram, hoje se mostra ainda mais pertinente. “Por causa da pandemia, sem sair de casa, nós usamos menos roupa e, portanto, lavamos menos roupa. O desafio agora foi totalmente incorporado. As pessoas me falam: ‘Eu passo uma semana com a mesma calça’. E por que não, gente?”.
Lilian levanta a bandeira da sustentabilidade há quase 15 anos, desde que foi impactada pelo documentário “Uma Verdade Inconveniente”, sobre a campanha do ex-candidato à Presidência dos Estados Unidos Al Gore. “Aquilo me tocou profundamente”, conta. “Os questionamentos sobre moda, como ela precisava se transformar. Acho que agora a moda está fazendo essa lição de casa.”
Para ela, a relevância do setor não tem como ser questionada – afinal, a moda é e sempre vai ser uma forma de nos expressarmos, mesmo numa crise como a que vivemos. “A máscara vai ser a nova camiseta”, afirma. “Escolher usar uma de coraçãozinho, roxa ou com uma mensagem é um statement de moda.”
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Em casa desde o começo da pandemia, Lilian aprendeu a cozinhar e, por meses, deixou de cortar os cabelos. Em conversa com Universa, ela conta como criou uma campanha para apoiar a moda nacional, diz que o setor – assim como a sociedade – é racista e afirma que está decepcionada com os desfiles online, além de explicar por que um robô virou sua companhia constante.
A seguir, trechos da conversa com Lilian. Nas imagens, retratos de como as pessoas estão aliando proteção e estilo —com estampas combinadas, logomania, discursos e arte — em suas máscaras pelas ruas de diversas cidades pelo mundo.
Lilian, do que você tem observado, quais foram os principais impactos da pandemia para o universo da moda?
A gente ainda vai sentir muitos impactos. O primeiro, sem dúvida, é a freada que a produção e o consumo sofreram. Isso aconteceu com várias outras áreas, só que a moda tem um ciclo mais rápido que muitos setores. As marcas já tinham, por exemplo, a coleção de outono e inverno toda calculada para um determinado volume, e ele diminuiu muito. De cara, já saiu no prejuízo. A maioria das marcas também não estava preparada para venda online. Algumas cujo faturamento no online era de 3% até dobraram as vendas, o que é um sucesso, mas elas foram para 6%, 7%. O que é isso? Nada. Para fechar a conta, faltam 93%. Então é um momento muito delicado.
Você criou uma campanha para tentar reverter esse quadro. Como ela surgiu?
Um dos atributos da sustentabilidade, minha bandeira da vida, é o consumo local. Isso a gente já aprendeu com a alimentação, mas na moda ainda não é muito introjetado. Criei a campanha “Eu apoio a moda nacional” em cima de uma ideia do [estilista] Sandro de Barros. Ele pediu para as pessoas postarem no Instagram um look com uma marca nacional e eu postei um pouco antes de dormir. Quando acordei, o post tinha bombado. E resolvi fazer essa campanha em vídeo, que teve uma adesão linda de todo mundo, de camareiras e costureiras até garotas-propaganda e atrizes. Só por 75% da mão de obra da indústria da moda ser mulher, todo mundo já deveria apoiar a moda brasileira.
E por que não existe esse apoio?
Acho que tem um pouco de complexo de colonizado do brasileiro, essa coisa eterna de achar que a grama do vizinho é mais verde. Se uma marca internacional faz um baita sucesso é “uau”. Quando uma marca brasileira faz um sucessinho, implicam com ela. É muito importante a gente mudar essa chave. Não acho que ser supernacionalista e protecionista como França, Itália e Estados Unidos é o caminho, mas precisamos equilibrar melhor onde investimos nosso dinheiro enquanto consumidor, porque nós exercemos nossa cidadania através das escolhas de consumo, inclusive na moda.
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Você acha que, num contexto como o que vivemos de crise sanitária, a moda corre risco de ser vista como supérflua?
Não, porque a moda sempre será uma forma de expressão. Até que se vire radicalmente essa chave, ninguém vai sair nu por aí. Então, como todo mundo precisa se vestir, por que você abriria mão de fazer isso se expressando, se esse recurso está à disposição? Hoje, a grande maioria está optando por roupas confortáveis, mas tem gente que foi para o lado da fantasia. E isso é o fascinante da moda: ela permite e serve no que você precisar, no que quiser.
A moda sempre foi influenciada por grandes momentos da história, como guerras. Como você acha que ela vai responder à pandemia?
A primeira mudança é que as pessoas estão olhando aqui [ela faz um movimento apontando do tórax para cima]. Agora mesmo acabei de ter uma reunião com 50 pessoas no Zoom e a maioria usava um tricô, assim como você. É a coisa do conforto: você está em casa e, ao mesmo tempo, está bem-vestido. Outro efeito da pandemia é a máscara.
No começo, todo mundo falou que as marcas não podiam fazer. Por que não? Elas devem fazer, porque a máscara vai ser a nova camiseta. Escolher uma de coraçãozinho, roxa ou com uma mensagem é um statement de moda.
Claro que a primeira função dela é de proteção e é fundamental que ela proteja, mas uma coisa não elimina a outra.
O seu desafio #1lookporumasemana faz ainda mais sentido hoje?
A ideia é passar uma semana com a mesma roupa. O desafio foi uma reação ao “look do dia”. Achava um absurdo, além de cafona e totalmente fora de moda. Parecia um monte de sinhazinha trocando de roupa o dia inteiro como se fosse em outro século, quando as mulheres tinham que se trocar para almoçar, tomar chá, jantar, ir no coquetel. Achava um retrocesso. Agora, por causa da pandemia, sem sair de casa, nós usamos menos roupa. O desafio foi totalmente incorporado. As pessoas me falam: “Fico uma semana com a mesma calça”. E por que não, gente? Lavar e passar tanta roupa é desperdício da nossa energia, de água, de eletricidade.
Em junho, uma modelo levantou no Instagram outra vez a questão do racismo na moda. Ela é racista?
A moda é racista. Assim como a medicina, o direito, a engenharia. Vivemos numa sociedade racista, infelizmente, e a moda é um reflexo disso. Mas há interesse em mudar.
Como ignorar que mais de 50% da população brasileira é negra e parda? O mercado de beleza já estava acordando no sentido de criar produtos específicos para as necessidades de pele ou de cabelo. Moda não tem uma necessidade específica, mas tem a identificação. Nos desfiles já há muita diferença. Agora teve a Semana de Moda de Alta-Costura, a de Moda Masculina de Paris e de Milão, e as marcas estão todas com representatividade. Não adianta ser apenas o efeito George Floyd, tem que ser para ficar, mas muitas vezes é preciso tomar um soco na cara para acordar.
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E como consumidores, o que podemos fazer?
Você pressiona, você escolhe. A hora que tiver que gastar R$ 100, não pense em gastar, e sim em investir. Para quem vou dar meu dinheiro? Quando a gente coloca no banco, não escolhemos o banco de nossa preferência? Então temos que escolher a marca. Optar pela que merece nosso crédito. Já está na hora de a gente assumir esse papel como consumidor, sabe?
Falando das semanas de moda, algumas marcas anunciaram desfiles presenciais, a Semana de Paris está voltando. É o momento para isso?
É o seguinte: eu não vou [risos]. O que vejo, até nas semanas digitais que aconteceram agora, é que as pessoas confundem o online com o ao vivo. Por um lado é interessante, porque criou-se um calendário como se fosse presencial: no horário tal a marca tal lança sua coleção. Por outro, o que a gente viu foi uma promoção de fashion films, de vídeos basicamente. Ninguém fez um modelo que misturasse, de fato, a emoção do ao vivo com a informação da coleção.
Confesso que fiquei até decepcionada com esses grandes criativos mundiais. E acho que essa Semana de Moda de setembro pode até ser presencial, mas ela jamais será como era antes, não tem como. Acho que o modelo futuro vai ser híbrido de físico com digital.
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São Paulo deve retomar a sua SPFW?
Não sei. Se você me perguntar hoje, eu falo: eu não iria. No começo da pandemia, o Alexandre [Herchcovitch] ia fazer um desfile e eu falei: eu não vou. Disse que achava que ele deveria fazer algo virtual. Ele ficou até meio bravo comigo. No fim, fez o evento digital, porque não era só eu, era muita gente com a mesma preocupação. Acho que a gente tem que se adaptar. A saúde tem que estar em primeiro lugar, precisamos tomar cuidado.
Durante a pandemia, alguns influencers se mostraram irresponsáveis. Teve gente que fez festa, outros pareciam viver em outro planeta. Isso é um sinal de alerta para as marcas?
Sabe aquela história de quando um não quer, dois não brigam? As marcas usaram alguns influenciadores, digamos, superficiais, que por qualquer dinheiro faziam qualquer coisa – e depois por muito dinheiro faziam também qualquer coisa. Mas houve um deslumbramento de ambas as partes com esse castelo de cartas. As fadinhas vinham e vendiam tudo o que estava encalhado – muitas vezes enganando quem estava lá. Virou uma máquina de moer dos dois lados porque um usou o outro. A liberdade e a autenticidade não estavam em questão. E veio a pandemia.
Como você ia vender “uma brusinha” quando a pessoa está lá sem emprego, sem comida? O conteúdo de verdade passou a ser valorizado.
A revista “Vogue Brasil” trouxe recentemente uma capa com a Gisele Bündchen, ao contrário das outras edições pelo mundo, que estamparam, por exemplo, mulheres da linha de frente do combate ao coronavírus. A revista errou?
Acho que sim. Uma capa que tem a Gisele usando uma marca internacional com a chamada “O Novo Normal”? As coisas não encaixam, entendeu? Você podia ter a Gisele, você podia ter o “novo normal”, mas junto não encaixou. Acho que foi uma infelicidade. Mas todo mundo erra e acho que, às vezes, você está tão envolvido no processo, planejou aquelas capas lá em dezembro, que não consegue pensar em outra coisa.
E como pessoalmente isso tudo a afetou? Você tem saído de casa, ido ao cabeleireiro?
Há muitos anos eu mantinha o cabelo curtíssimo. E, como não estou com coragem de ir no cabeleireiro, nem lembrava que tinha tanto cabelo. Aqui atrás está horrível, daí eu puxo tudo e faço um truque, jogando para trás. Mas já passei por vários momentos. No começo, fiquei muito em choque, até como comunicadora. Como eu poderia ser relevante? Pessoalmente, tinha medo de não dar conta de tudo. Uma amiga tinha me falado de um robô que limpa sua casa e eu comprei. Fiquei muito amiga do robô, ele é um dos grandes valores da minha vida hoje [risos]. E tive que aprender a cozinhar um pouco porque eu não sabia fazer nada e gosto de comer em casa. Tenho dias de angústia, dias de risada, mas, no geral, estou tranquila no sentido de aceitar. Acho que 2020 só em 2021.
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