Maya Santana, 50emais
A passagem do tempo é um dos temas preferidos da escritora e tradutora gaúcha Lya Luft. Ela própria já confessou. Tem livro sobre este assunto, que aborda com frequência também em suas crônicas. Beirando os 79 anos de vida ( 15 de setembro), Lya Luft sempre expressa uma visão que não é rósea, mas mais positiva da velhice, como neste trecho do texto abaixo: “Para entender que maturidade e velhice não são decadência mas transformação, temos de ser preparados para isso. Dispostos a encarar a existência como um todo, com diversos estágios, variadas formas de beleza e até de felicidade.”
Leia este trecho do livro “Perdas e ganhos” (Record, 2006):
Para Vovó a beleza foi um tormento, porque o tempo não se detinha e desde moça seu maior pavor era perder aquele bem supremo. Olhava-se nos espelhos procurando uma primeira ruga, uma primeira dobra. Uma primeira manchinha. Quando chegou aos 60 anos quase morreu de dor, andava pela casa gritando: – Eu odeio fazer 60 anos! Eu não aguento fazer 60 anos!
Não adiantava as pessoas dizerem que parecia nem ter 40, tão conservada. Argumentavam com ela: – Tente imaginar que você está conquistando a maturidade em vez de perder a juventude; e que um dia vai ganhar a velhice em vez de perder a maturidade. Não é muito mais natural pensar assim? Mas Vovó não aceitava, para ela o natural não era natural: – Eu odeio pensar que estou ficando velha. Não aceito, não aceito, pronto.
As primeiras cirurgias leves tinham-lhe feito bem: removeram um traço amargo, um sinal de cansaço prematuro. Depois seu médico lhe disse: – Vamos deixar a natureza agir um pouco e o corpo descansar. Não abuse.
Ela então foi procurar outros médicos, que faziam suas vontades.
Desafiando o indesafiável e excedendo seus limites, foi entrando no irreal. Mas as ilusões não continham mais o tempo, e o costurado voltava a descoser. Minha Avó foi-se isolando. Apartou-se das amizades, deixou as festas, não gostava mais de ninguém. Começou a delirar reclamando que todo mundo a apontava nas ruas, nas lojas, nos restaurantes: Lá vai aquela velha. Cada vez mais difícil de lidar e conviver, exigia o que ninguém podia lhe dar: o tempo congelado. Aos poucos foi sendo devorada por dentro também. O rosto de minha Avó, de tanto ser remendado, foi-se tornando outro. Mudou o olho, mudou o nariz, mudou o queixo, mudou até a orelha. No fim nada mais nela era dela. (O ponto cego, 1999).
Se quisermos congelar o tempo e nos encerrarmos nesse casulo, estaremos liquidados antes mesmo que a juventude acabe. Seremos a nossa ficção. A realidade continuará à nossa volta, e um dia vamos descobrir que estamos fora dela. Para alguns essa será a crise salvadora. Acabou a invenção de um “nós” fantasmal.
Se ainda quisermos viver, não vegetar na prateleira da nossa fantasia, teremos de encontrar nessa aflição o que restou de nossa personalidade. Pois ela é quem vai nos dar consistência e capacidade de crescer até o último raio de lucidez. Assim se pode ter controle, não sobre o tempo, mas sobre o quanto ele vai nos favorecer ou aniquilar.
Para entender que maturidade e velhice não são decadência mas transformação, temos de ser preparados para isso. Dispostos a encarar a existência como um todo, com diversos estágios, variadas formas de beleza e até de felicidade. Acreditar que com cuidado e sorte poderemos ser atuantes mesmo décadas depois: isso tem de ser conquistado palmo a palmo. Porém já na infância nos preveniam de que logo adiante algo de mau nos esperava: “Quando tiver a minha idade, você vai ver”, diziam mães, tias, avós. “Aproveite agora que é criança, quando crescer acaba a festa!”, aconselhavam com laivos de despeito. “Estou muito velha pra essas coisas”, protestavam na hora de se divertir ou alegrar.
Existir no tempo nos foi mostrado como uma corrida infausta: cada dia uma perda, cada ano um atraso. Quem não teve seus momentos de querer nunca crescer para não enfrentar aquelas vagas ameaças? Sendo contraditórios – por isso interessantes -, não é estranho que na época em que mais vivemos se fuja tanto disso que se convencionou chamar velhice. E por imaginarmos que nossas últimas décadas são apenas decadência, reforçamos o tabu que reveste essa palavra. Palavras significam emoções e conceitos, portanto preconceitos. Por isso quero falar de minha implicância com a implicância que temos com os vocábulos – e a realidade – velho, velhice.
Detestamos ou tememos a velhice pela sua marca de incapacidade e isolamento. É algo a ser evitado como uma doença. Não deixa de ser tolo encarar o tempo como um conjunto de gavetas compartimentadas nas quais somos jovens, maduros ou velhos – porém só em uma delas, a da juventude, com direito a alegrias e realizações. Pois a possibilidade de ter saúde, projetos e ternura até os 90 anos é real, dentro das limitações de cada período.
Quando não pudermos mais realizar negócios, viajar a países distantes ou dar caminhadas, poderemos ainda ler, ouvir música, olhar a natureza; exercer afetos, agregar pessoas, observar a humanidade que nos cerca, eventualmente lhe dar abrigo e colo. Para isso não é necessário ser jovem, belo (significando carnes firmes e pele de seda… ) ou ágil, mas ainda lúcido. Ter adquirido uma relativa sabedoria e um sensato otimismo – coisas que podem melhorar com o correr dos anos.
Mas predomina a ideia de que a velhice é uma sentença da qual se deve fugir a qualquer custo – até mesmo nos mutilando ou escondendo. No espírito de manada que nos caracteriza, adotamos essa hipótese sem muita discussão, ainda que seja em nosso desfavor. Isso se manifesta até na pressa com que acrescentamos, como desculpa: “Sim, você está, eu estou, velho aos 80 anos, mas… jovem de espírito.” Porque ser jovem de espírito seria melhor do que ter um espírito maduro ou velho? Ter mais sabedoria, mais serenidade, mais elegância diante de fatos que na juventude nos fariam arrancar os cabelos de aflição, não me parece totalmente indesejável. Clique aqui para ler mais.