Márcia Lage
50emais
Marte Um, o filme brasileiro indicado ao Oscar de 2023, merece ser visto por muitos motivos: o principal deles é que um diretor da periferia de Belo Horizonte, Gabriel. Martins, de 34 anos, vem despontando no seleto grupo dos que conseguem fazer cinema no Brasil. Com o discreto jeito mineiro de fazer arte: sem muito estardalhaço mas com qualidade, simplicidade, criatividade e ousadia.
Gabriel faz bem feito. O filme ganhou quatro prêmios no Festival de Gramado, um deles o de melhor roteiro. Com um elenco de atores pretos, muito silêncio e delicadezas, ele conta uma história de gente que sonha, que luta, que se ajuda e se ama.
É o cotidiano de uma família que já saiu da miséria, mas ainda passa dificuldade para pagar as contas. Que vê nos filhos a esperança de subir mais um degrau na irregular escada das desigualdades sociais.
Ao contrário do filme de Lázaro Ramos, Medida Provisoria, que é um soco no estômago da elite branca e preconceituosa, Marte Um ignora os algozes da raça negra no Brasil. Seus personagens são pessoas que lutam com outras armas, como o estudo e a não-violência.
Assim, de cena em cena, o filme apresenta ao espectador uma série de personagens com os quais nos identificamos: os porteiros dos prédios, as faxineiras, as estudantes empoderadas, conscientes dos papéis que terão de ocupar na sociedade para mudar o jogo brancos X pretos.
Mineiramente, tudo é dito de forma velada, em cenas muito bonitas, com uma assinatura pessoal de luz, diálogos, cenários e trilha sonora (um dos quatro Kikitos obtidos em Gramado).
É um filme tão real e empático que atrai plateia predominantemente preta, o que é raro, mesmo quando o tema em questão são as dificuldades que essa população tem de sobreviver no Brasil. Tanto que o sonho de um dos personagens, o nerd David, é fazer parte da missão de coloniza Marte, começar nova história de vida em outro planeta.
A realidade apresentada sem drama na obra de Gabriel Martins saiu da tela para a porta do Cine Belas Artes em Belo Horizonte, nesta sexta feira pré-eleitoral.
Um mendigo implorava por ajuda para comer. Ignorado, passou a gritar para as pessoas que comiam e bebiam no pequeno Café que há no hall de entrada. Enquanto tentavam afastá-lo do recinto uma pessoa caminhou em sua direção com uma nota de dez reais.
Assista ao trailer:
O mendigo abaixou o tom, finalmente tinha sido ouvido, visto, entendido. Agradeceu efusivamente a esmola, explicando que não tinha nem um cobertor para estender na rua.
O doador tocou-lhe o braço e falou: “Não se desespere. Domingo tudo vai mudar. Voltaremos a ser um país digno”. Sutil e delicado como uma cena de Gabriel Martins.
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