Márcia Lage
50emais
O motorista do ônibus quis me impedir de embarcar com os quatro jacarandás da Bahia (Dalbérgia nigra, no cientifico, Caviúna ou Cabiúna no popular).
Disse que a fiscalização não permitia o transporte de mudas e que ele estaria perdido se houvesse uma operação na estrada.
– Até parece – pensei. A agência reguladora do transporte terrestre mudou de lado. Agora é concessionária das estradas e só multa motoristas por meio de pedágios eletrônicos. Não está nem aí para os ônibus, que são umas carroças do século passado.
Enquanto pensava, devo ter lançado ao motorista um olhar tão sincero de defesa das minhas quatro mudinhas, que ele me deixou embarcar. Meus filhotes de jacarandá estavam viajando comigo há quatro dias.
Primeiro de trem, do Instituto Terra, em Aimorés, em Minas, onde os adquiri, até Coronel Fabriciano, cidade em que fiz uma parada para rever irmãos.
Dois dias depois, peguei um ônibus para Belo Horizonte e depois outro, para Caxambu.
As bichinhas estavam amarradas cuidadosamente dentro de seus tubetes de germinação, e eu as molhava regularmente.
Mas começavam a amarelar e a desfolhar. O destino delas é uma pequena fazenda em Conservatória, no Rio de Janeiro, onde, desde a pandemia, trabalho no restauro da floresta original.
Árvore nobre, de madeira escura, resistente a pragas e a intempéries, o jacarandá da Bahia foi explorado exaustivamente no Brasil, desde a colonizacão, para fabricação de casas, instrumentos musicais e móveis de luxo.
Parte da mobília do Castelo de Balmoral, na Escócia, onde a família real britânica passa as férias de verão, é feita com a nossa caviúna.
O mobiliário do primeiro Senado do Brasil, ainda no Império, é lindamente entalhado em Dalbérgia nigra.
Pode ser visitado em Brasília, para onde foi transferido com a demolição do Palácio Monroe, no Rio. Foi lá que funcionou de 1826 até 1960.
Com a mudança da capital, os móveis foram transferidos para o Distrito Federal e ficam expostos em frente ao maior auditório da casa legislativa, conhecido como plenarinho.
A madeira do Jacarandá da Bahia tem um óleo que a protege do cupim, daí sua infinita durabilidade.
O som dos instrumentos musicais produzidos com ele também é mais puro.
Até os primeiros carros fabricados no Brasil tinham a caviúna nos acabamentos internos.
Depois de 300 anos de exploração, sem reposição da espécie, ela entrou para a lista vermelha das árvores de lei em extinção.
Atualmente, a Dalbérgia nigra raramente é encontrada na natureza.
Viveiros como o que Sebastião Salgado mantém no Instituto Terra tentam impedir a extinção, coletando as sementes dos poucos exemplares remanescentes e multiplicando a espécie, para projetos de urbanização ou recomposição florestal, principalmente no seu bioma nativo, que ja perdeu mais de 80% de sua cobertura original.
Não se deve confundir o Jacarandá da Bahia com o Jacarandá mimoso, mais presente no paisagismo brasileiro.
Conhecido por sua exuberante floração azul, ele é nativo da Bolívia, Argentina e sul do Brasil, e também está ameaçado de extinção em seus habitats.
Sua madeira é boa para construção e mobiliário, mas menos resistente que a do Jacarandá da Bahia.
Esse possui floração mais discreta, de um amarelo creme cujo aroma atrai muito a indústria de perfumes e abelhas melíferas.
O mel produzido a partir dessa flor custa em média 80 reais o litro. O valor da madeira pode chegar a quase 30 mil reais por metro cúbico.
Pássaros e morcegos gostam muito do fruto, dificultando a formação das sementes, o que torna difícil sua propagação na natureza.
A Dalbérgia nigra é uma árvore protegida pelo Ibama e só pode ser extraída mediante autorização de exploração e documento de origem florestal.
Por tudo isso é que trato feito bebês as minhas quatro mudinhas, replantadas em sacos plásticos reaproveitados, com terra adubada, regas controladas e exposição ao sol que entra de manhã no meu pequeno apartamento.
Elas vão ter que resistir até outubro, quando começa o período chuvoso, para serem plantadas definitivamente na fazenda que refloresto.
Daqui a cinco anos, se tudo der certo, teremos a primeira floração.
A árvore alcança até 12 metros de altura e sua copa tem o formato de um bonzai gigante.
Por causa dessas quatro mudas estou decidida a não morrer tão cedo.
Preciso cuidar delas e de mim, para, em 2029, já na casa dos 70, sentar à sombra dessas árvores, aspirar sua delicada fragrância e lembrar da frase de Fernando Pessoa: “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena”.
bela cronica e belissima disposição …parabéns garota
Pequenos gestos grandes resultados, Marcinha. Adoro a natureza, os rios, as árvores…Parabéns. Gostei muito da sua crônica e da sua disposição de repovoar o mundo com as habitantes que já estavam aqui antes de nós, as árvores.🌿