Márcia Lage
50emais
– Encoste-se bem reta na cadeira e olhe aqui – falou a moça do serviço de emissão de carteira de identidade, apontando para uma máquina fotográfica mequetrefe, com menos pixel do que o meu celular. Lembrei-me das aulas de yoga, girei os ombros para trás e para baixo, para afastar a orelha do pescoço, como eles dizem, e esbocei um sorrido de Monalisa, lábios fechados.
– Não pode rir – disse a moça – e eu pensei: não vai prestar. Foto séria, com luz de tungstênio, sem uma lente apropriada, nenhum rebatedor e eu ainda sem maquiagem, só photoshop na causa.
Ela mal me deixou respirar e apertou o obturador. Pedi para ver. Era o retrato do futuro que eu tanto temia. Ali estava eu aos setenta. Porém, ainda que a contragosto, acabara de completar sessenta. Não era justa a imagem. Dez anos mais velha, numa foto amarelada e sem contraste. Foi uma revelação chocante.
– Pode apagar esta e fazer outra, por gentileza? Vou me posicionar melhor! Ajeitei o cabelo, respirei fundo para soltar a ruga de entre os olhos, virei o rosto num suavíssimo perfil.
– Tem que ficar de frente. Olhe para a câmera. Não pisque. Abaixe um pouco o queixo. Isto. Clique!
– Deixa eu ver? Ela virou a câmera para mim, e eu captei o “ai que saco” que ela pensou. Jesus, o que era aquilo? Minha mãe, minha tia, minha avó? Eu tinha aquela expressão? Um rosto amarfanhado e uma cara ranzinza, olheiras, bigode de gato, boca sem lábios, nariz caído?
– Vocês corrigem um pouco a foto ou vai assim mesmo? Vai assim mesmo, ela resmungou. E foi logo avisando: Não posso fazer outra, são duas chances. Senão fico aqui o dia inteiro só para atender uma pessoa!
Que falta de caridade para com o ser humano, pensei ao sair da sala. Tive a esperança de que, reduzida de tamanho, a foto não ficasse de todo tão ruim. Mas quando voltei para pegar a nova carteira, o susto foi ainda maior. Sim, era eu em 2035, ou então os espelhos da minha casa é que refletiam uma imagem desatualizada de mim.
Tirei da bolsa o documento antigo, emitido quando eu completara 30 anos. Retrato em preto e branco, um pouco corrigido, acho, porque eu estava tão bonitinha nele! Uma expressão suave no rosto redondo, um olhar expressivo, uma boca de lábios definidos, ainda que finos. Lembrei-me que havia cortado o cabelo no dia, e que o meu cabeleireiro daquele tempo, Walmir, me fizera uma ligeira maquiagem. Fiquei muito bem na foto.
Trinta anos depois, o que eu tenho nas mãos é um atentado ao pudor. Por que não montam um pequeno estúdio e contratam um fotógrafo para tirarem essas fotos de documentos? Uma iluminação adequada e um bom posicionamento do rosto fazem a diferença na fotografia. Devia ser crime um servidor público roubar a idade das pessoas!
Consolei-me com a ideia de usar e abusar da carteira nos privilégios da terceira idade. Meia-entradas nos cinemas e teatros, isenção de pagamento nos banheiros públicos, talvez até passagens de graça nos ônibus urbanos. Cogitei em voltar a ter carro, só para estacionar em vagas de velhinhos. Ainda faltavam cinco anos para ter esse direito, mas com aquela carteira, jamais seria multada.
O pior é quando a mostrei aos amigos, na esperança de ouvir desaforos à péssima fotógrafa e elogios à minha aparência juvenil, não houve espanto. Uma me disse que eu devia “apenas” ter suavizado um pouco a expressão, porque ficara muito séria na foto. O outro tascou na minha cara: “Você não está muito melhor que isso não”.
E agora? Corto os pulsos ou compro um carro?
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