Márcia Lage
50emais
Nietzsche tinha razão: “Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um
monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha de volta para você.”
Cá estou do outro lado, na outra idade, como diz a psicóloga Gláucia Prosdocimi. Perdi o medo de
envelhecer. Saí da envelhecência. Agora é isso que politicamente renomeiam para escamotear a realidade de uma nova vida que começa aos 60, e que se chama… velhice mesmo.
Não tem mi mi mi nem ti ti ti. É pegar ou largar. Peguei: meia- entrada nos cinemas e teatros, gratuidade nos banheiros públicos, assentos reservados nos ônibus e metrôs, filas especiais em bancos e supermercados. Nem sei se os privilégios da terceira idade são certos ou errados.
De vez em quando deixo que os meninos das escolas finjam que não me viram em pé e descansem suas cabecinhas sonolentas no banco reservado para nós, os teoricamente mais necessitados. Tenho pena deles. Já fui estudante e sei a barra que é acordar cedo e passar o dia aprendendo coisas que não se quer aprender.
Mas não vou abrir mão dos meus direitos. Exijo respeito aos meus cabelos vermelhos, porque já decidi que não vou deixá-los brancos, ainda! Não agora que virou moda. Gosto de ser do contra. Talvez os pinte de azul aos 70, decido quando chegar lá.
Um abismo de cada vez. Foco no presente. Nada de relembrar demais o passado nem se preocupar com o futuro antes da hora. Ganhamos dos jovens nesse quesito. Não temos mais obrigação de nada, qualquer coisa que fizermos é por puro deleite, não por necessidade.
Outro dia. minha sobrinha de 12 anos disse: “Já sei o que quero ser quando crescer: Aposentada!”. Ela já sacou o barato que é não ter hora para dormir nem acordar, poder viajar em qualquer época do ano, estudar o que se quer, sem compromisso com o ENEM.
Se os jovens nos invejam o “dolce far niente”, eu é que não invejo a vida atribulada deles, que ainda vão ter que passar por todas as crises pelas quais já passei. É hora de desfrutar da jornada. Não há metas a serem cumpridas nem projetos ambiciosos a serem alcançados.
Quero mais é aproveitar a vida. Fazer o que eu ainda não fiz por falta de tempo ou de oportunidade. Aprender coisas novas. Ficar ligada nos avanços tecnológicos e não ter vergonha de pedir ajuda às crianças, que já nascem sabendo essas coisas.
Conviver com elas é uma riqueza imperdível. Crianças e jovens não têm preconceito contra velhos. Nós é que nos “autopreconceitualizamos”, nos separamos em guetos, em grupos de terceira idade. E isso é coisa recente. Até meus avós vivíamos todas as gerações juntas, trocando experiências e saberes, rindo uns com os outros, contando piadas e histórias, nos ajudando e complementando.
Não me lembro dos meus avós em aflição por serem velhos. Não me recordo dos netos pondo reparo no envelhecimento deles, criticando-os ou elogiando-os por seguirem vivendo. Era tudo muito natural e bonito, como as estações do ano e os tempos do plantio e da colheita.
Por que mudou? Não tenho a resposta, mas ando refletindo sobre o “apartheid” que nos impuseram gradativamente a partir do envelhecimento dos nossos pais, e como estamos aceitando isso, buscando arranjos para vivermos isolados num futuro próximo, como se não pudéssemos viver todos juntos e misturados.
Não vou me deixar acuar porque sou velha, nem vou ter vergonha de não ser mais jovem. Vou fazer o que for possível para ficar bem, não para parecer ser o que eu não sou mais. Também não vou recusar a companhia dos mais jovens, por timidez ou prepotência.
Agora que atravessei o abismo, vejo que é necessário construir uma ponte sobre ele. A humanidade não avança por faixas etárias. Qual é a dessa gente que nos classifica, rotula, enquadra e empacota?
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