Márcia Lage
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O aquecimento global tirou de pauta a poluição sonora. Nos anos 1980 equipes da Defesa Civil saiam às ruas das capitais para medir os niveis de ruido, multavam bares com música ao vivo e acabavam com festinhas barulhentas depois das dez da noite.
Desconfio que o bico calado sobre o assunto venha do fato de, no conjunto das causas da mudança climática, a poluição sonora ser apenas mais uma consequência da falta de investimentos em transporte de massa.
Enquanto os governantes se atracam por campos de petróleo e estimulam a fabricação e a venda de carros para se eximirem da responsabilidade de construir metrôs, ferrovias e linhas de ônibus movidos a eletricidade, as metrópoles vão ficando insuportáveis.
Não há barulho maior do que o de buzinas, sirenes, escapamentos e caixas de som dos motoristas que já ficaram surdos e se vingam dos que ouvem acordando-os no meio da madrugada com um funk nas alturas.
De acordo com o IBGE, em 2022, o Brasil tinha 61 milhões de veículos particulares rodando nas ruas, a maioria com uma pessoa dentro; e 26 milhões de motocicletas. Em 2023 as vendas de motos cresceram 19,68% e as de carro, 5,6%.
Cada veículo desses, movido a gasolina, lança na atmosfera 120 gramas de gás carbônico por quilômetro rodado. E o barulho que fazem é infernal. Todo mundo nervoso pelo trânsito que não anda, a cara para fora proferindo estrondosos palavrões contra motoqueiros que abrem caminnho com buzinas e aceleradas desafiadoras. É de matar do coração os assustados pedestres.
Ninguém dorme tranquilo nas gaiolas de concreto das grandes cidades. De madrugada, são os caminhões da coleta, a gritaria dos lixeiros, o impacto dos resíduos sendo lançados de longe na caçamba, que geme e tritura o sono dos justos.
A manhã nos arranca da cama com o alarido dos ônibus e freadas de caminhões, competindo no desafio de chegar a algum lugar. Nas horas de pico, os niveis de barulho chegam a 70 decibéis, quando o limite tolerável é de 40.
Não é à toa que 10 milhões de brasileiros tenham deficiência auditiva e quase três milhões apresentam surdez profunda. Desse total, 57 por cento são pessoas acima dos 60 anos. Apenas 9 por cento nasceram com a deficiência, aponta estudos do Ministério da Saúde.
O problema só tende a piorar com a desatenção crônica às causas desse desconforto. Fechar bares e proibir festinhas é tão inócuo quanto querer conter a dengue com fiscalização de vasos de plantas.
O problema é macro. Exige macro enfrentamento. Não meias-soluções como tradutores de libras nos programas de TV, quotas para inclusão no mercado de trabalho, garantia de aparelhos auditivos no Sistema Público de Saúde.
É preciso calar as cidades com transporte de massa moderno, eficiente e capaz de suprir a demanda de todos. A solução individual para a questão da mobilidade urbana só agrava o desequilíbrio ambiental e o mal-estar humano.
Nessa altura do avanço para o caos do aquecimento global, tratado apenas como consequência de queimadas e deflorestamentos, é até compreensivel que pessoas longamente expostas à barulhada incivilizatória das cidades se neguem a usar aparelhos auditivos.
Apesar do isolamento social, da discriminação e de vários tipos de demência que a surdez provoca, deve ser um alivio poder dormir em paz, depois de tantos anos vivendo sob o barulho incessante e atordoante das cidades.
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