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Este texto foi escrito pela jornalista Ruth Aquino, para o jornal O Globo, sobre o nascimento do pequeno Tyson, em meio ao cáos criado pelas inundações que cobrem 85% do estado do Rio Grande do Sul.
A mãe, grávida de 40 semanas, o pai e o irmãozinho foram resgatados de bote na casa em que moravam, em Canoas, cidade, como tantas outras, tomada pelas águas.
Três dias depois, em um abrigo de Porto Alegre, com a ajuda de médicos voluntários, nascia Tyson, um menino forte, quarto integrante da família.
Um presente, um raio de sol, em plena tragédia de proporções bíblicas que os gaúchos estão vivendo.
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A água subia muito rápido. Gislaine olhava o quartinho do bebê prestes a nascer, não queria deixar sua casa ser engolida pelas enchentes, no bairro Harmonia, em Canoas, no Rio Grande do Sul. Ela estava acompanhada do marido, o auxiliar de obras Pierry, e do filho Kalel, 4 anos. Também estava com Tyson, na barriga de 40 semanas de gravidez.
Não teve jeito. Com a casa quase submersa, a família foi resgatada de barco na sexta-feira passada. Gislaine passou a noite numa academia de ginástica. E foi para um abrigo improvisado. Depois de um dia dolorido na tentativa de parto normal, recorreu à cesárea, com ajuda de médicos voluntários. Deu à luz um bebê saudável, menos de 72 horas depois do resgate. Foi levada ao Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
Às vésperas do Dia das Mães, não li outra história que tenha me tocado mais. Como Gislaine, sou mãe de dois meninos, hoje homens. Só mulheres entendem as dores e o êxtase do parto. Imagine nessas condições. O desespero.
Conhecemos o maior responsável por essa catástrofe ambiental e humana que atingiu o povo gaúcho: a negligência, com o clima, com a população, com os sinais da Natureza. Descaso municipal, estadual e federal, que atravessa todos os partidos políticos.
Mas hoje quero falar de Gislaine, Pierry, Kalel e Tyson. O parto foi revelado pelo jornal Zero Hora e repercutido pela repórter Paolla Serra, do GLOBO. Quase tudo nessa história parece ficção. A começar pelos nomes de pai, mãe e filhos. Onde foram parar os nomes brasileiros?
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Ela com 25 anos, ele 23. Tão jovens e com dois filhos. Moram num bairro chamado Harmonia, numa cidade pequena chamada Canoas, com 350 mil habitantes, a vida pacata e difícil. E de repente perdem quase tudo, mas não a vida. A casa continua debaixo d’água, pode ser que consigam voltar em um mês, mas o que salvarão? O que poderia ter sido uma tragédia familiar tornou-se um conto de luz. Gislaine fala com serenidade. Mãe feliz, depois da angústia, do medo de tudo, até de perder o bebê.
“Agora só o que penso é que Tyson é um pontinho de luz e esperança em meio ao caos e ao desastre. Diante de tantas adversidades, até que está tudo dando certo. Nessa confusão toda que passamos, Kalel ainda conseguiu comemorar por estar andando de barco pela primeira vez”. Assim são as crianças, com seu olhar de encantamento.
O caráter nacional brasileiro, se é que isso existe, pode ser criticado em muitos aspectos. Mas, diante de uma catástrofe com mortos e desaparecidos, o mesmo traço de personalidade ressurge com força descomunal país afora. A dedicação, dia e noite, de brigadas de voluntários, incansáveis. E a solidariedade e generosidade, com doações e orações. Outro traço que infelizmente aparece é a esperteza de aproveitadores. E de políticos que mentem para ganhar alguma vantagem.
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Gislaine, Pierry, Kalel e Tyson poderiam ter sumido nas águas, não fosse o trabalho dos voluntários. Poderiam estar na lista de mais de 100 mortos e mais de 130 desaparecidos no RS. Em vez disso, a família comemora. Está em festa. Um recém-nascido de 2.8kg e 48cm mostra que a vida é teimosa. Mãe e filho precisam de lenço umedecido, sabonete, shampoo e talco, blusas e sutiãs de amamentação, banheira para o bebê.
Feliz Domingo das Mães, Gislaine.