Maya Santana, 50emais
De todas as histórias que já escrevi, talvez esta seja a mais perturbadora. E aconteceu quando eu tinha pouco mais de sete meses de vida. Uma noite, os meus pais saíram para visitar um casal amigo. Minha mãe deixou a irmã dela mais nova, tia Cecília, tomando conta de mim. Foram, conversaram bastante, e voltaram cerca de duas horas depois.
Ao entrar em casa, ouviram um ronco forte. Correram para o quarto de onde vinha o barulho e se depararam com a cena que ficaria impressa na mente da minha mãe para o resto da vida: pressentindo a chegada deles, tia Cecília, na plenitude de seus 21 anos, acabara de tomar um copo de formicida e estava agonizando. Ao se dar conta do que acontecera, minha mãe desceu a rua gritando. Vizinhos, amigos, conhecidos e desconhecidos acudiram. Num instante, a casaampla, de muitos cômodos, se encheu de gente. O corpo da minha tia inanimado lá, em cima da cama, e todo mundo se perguntando por quê? Foramhoras de um sinistro desespero, com o burburinho crescente do contínuo trançar de incrédulos. O que teria decepcionado aquela jovem alegre, aparentemente de bem com a vida, com tantos amigos, a ponto de fazer com que desistisse de viver? Passado o estupor inicial, encontraram um bilhete dela, explicando o gesto extremado. Brigara com o noivo. Achava que, por serem tão diferentes e se desentenderem tanto, a relação não tinha futuro. Seria sempre conflituosa, não desfrutariam de paz. E ela não saberia viver semele. Ouvir aquela história trágica ser repetida tantas vezes, impregnou em mima impressão que, embora recém-chegada ao mundo quando tudo aconteceu, havia presenciado aquele trágico espetáculo: a gritaria da minha mãe enlouquecida, o pranto convulsivo do meu pai, a expressão atônita dos que vieram esbaforidos, a casa invadida pela multidão curiosa, a chegada apressada dos muitos parentes para cuidar de mim e dos meus outros cinco irmãos – o mais velho de apenas sete anos. Uma noite que se perpetuou na minha memória e, ainda hoje, me faz pensar naquela tia, cuidando de mim no que ainda lhe restava da vida. Atravessei a infância escutando a minha mãe rememorar aquela morte incompreensível e tão sentida. Ela sempre chorava. Depois, o tempo levou a dor embora. Ficou só a saudade da irmã tão menina, perdida por não saber escolher qual dos caminhos tomar na encruzilhada de uma relação amorosa. Por tia Cecília ser a caçula da família de quatro irmãos, minha mãe nutria um sentimento de mãe . O laço entre elas era de mãe e filha. Mais velha, quando mencionava aquela noite, minha mãe não mais chorava. Todas as lembranças dela e de outros que estavam presentes na cena do drama naquela noite de outubro se concentravam na morta. Ninguém se recordava do que foi feito dos meus irmãos. E nem mesmo de mim, com tão poucos meses de vida. Às vezes, me vem a certeza que, no atropelo da hora, faltou quem se lembrasse de me levar dali. Por isso, sigo pela vida, quase sete décadas depois, com a assombrosa sensação de ter testemunhado o suicídio da minha tia Cecília