Márcia Lage
50emais
O poeta não veio este ano ao nosso encontro. É a terceira vez que ele falta. E faltará eternamente.
Chegava com seu andar flutuante, mais aéreo que bêbado, seu chapéu de boêmio e seus olhos azuis atrás dos óculos de aro de metal. Parecia uma nuvem de calças, um homem metafísico de sorriso absorto.
Bebia cachaça com cerveja, alternadamente. A voz ia ficando espumosa, sem jamais cambalear ou dar vexame. Declamava versos autorais de amor ou dor, em pose de ator e voz empostada: Minas gerou-nos vencidos, gemendo gerações de reprimidos…
Pálido e romântico como Nosferatu, foi o primeiro a deixar o grupo, que se reúne todos os anos na proximidade do Natal. Coincidentemente, a festa deste ano caiu na data de seu falecimento. Sua ausência foi mais pungente.
Também sentimos falta da fotógrafa, que parou de frequentar nosso encontro desde o ano passado. Essa chegava afobada, como se estivesse vindo de uma maratona. Desembrulhava tortas salgadas e quitutes que preparava para a festa, exibia vestidos feitos à mão com seu talento de costureira, e não parava sentada, registrando o evento.
Trazia de presente para cada um de nós uma foto do encontro anterior. Notamos que já estava com dificuldade para lembrar nomes, reconhecer alguns. E, assim, lentamente, foi nos deixando, nesse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.
Este ano uma outra companheira também não veio. Ficamos sem sua comida vegana, sua energia desproporcional à doença, que traiçoeiramente a roubou de nós, quatro meses antes da festa. Era uma das mais jovens do grupo: linda, ativista, humanista, apaixonadamente presa à vida e à vocação para a alegria.
Na última hora o cinegrafista também desmarcou presença. Não anda bem de saúde há algum tempo, mas segue lutando. Teria apreciado muito a novidade do evento: uma cantoria animada, conduzida por duas cantoras recém-incorporadas ao grupo, que se renova a cada edição.
Todos são jornalistas que, após a aposentadoria, deram passagem aos seus talentos literários, musicais, cinematográficos, artísticos. A base original é composta de 15 pessoas fiéis, com idades que variam de 60 a 85 anos, que não deixam a festa morrer.
Pelo encontro anual passam muitos amigos flutuantes. Já chegamos a ter a presenca de 35 pessoas. A cada perda incorporamos novos integrantes ao grupo, que se mantém ativo o ano todo, discutindo os fatos que abalam o país e o mundo, no vício do jornalismo e do debate político.
E assim caminhamos, inabaláveis em nossas convicções e em nossa amizade, chorando nossos lutos, celebrando nossas conquistas, zelando uns pelos outros. Se o nosso poeta não tivesse partido, naturalmente tomaria a palavra e resumiria nosso encontro, declamando os versos de Carlos Drummond de Andrade que refletem a nossa teimosia em ser feliz:
(…)
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
(…)
Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
Não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.
Mãos Dadas – Carlos Drummond de Andrade
[Sentimento do mundo]