Renée Castelo Branco, 50emais
Acabo de receber por whatsapp esta foto, enviada por Tapi. Na reclusão da pandemia, tenho tempo para refletir sobre ela, feita há um ano: em março de 2020, Aritana olha para a câmara, que congela a expressão de tristeza e decepção.
Volto no tempo. Busco o olhar de Aritana 45 anos antes desse registro, quando estive no Xingu com Margarida, minha amiga da faculdade. Era um olhar limpo, de esperança, livre de preocupações. O Xingu ainda era um paraíso, embora uma estrada recente cortasse suas terras. Passávamos as tardes conversando com Aritana, então com 26 anos.
Deitado numa rede, trancado na casa de palha, estava de resguardo pelo nascimento do primeiro filho, Tapi. Ali, Aritana praticava habilidades aprendidas e naturais na conversa com os “brancos”, que cada vez mais viriam visitar a aldeia YAWALAPITI, conhecida por receber bem os “caraíbas”.
Fora escolhido e treinado pelos irmãos Villas-Boas, criadores do Parque Nacional do Xingu, para um dia ser o grande líder daqueles povos; alguém que pudesse fazer a ponte com um mundo ameaçador que se aproximava. O mundo dos “brancos”.
Era o que chamamos de estadista. Tinha real capacidade de liderança, carisma, habilidades de diplomata.
Se comunicava com os espíritos dos antepassados, era respeitado pelos mais velhos. Era campeão de Huka-Huka, uma luta praticada durante o Kuarup, cerimônia que celebra a passagem da morte de líderes. E reúne todas os povos do Alto Xingu.
Quando o vírus invadiu a aldeia, todos ficaram em alerta. Era mais um ataque, depois da estrada, das fazendas, das queimadas, da cobiça das mineradoras, que cercavam o parque. Mas desta vez era um ataque insidioso. O cansaço está estampado nas feições de Aritana, que morreu pouco depois, exausto de pedir ajuda às autoridades sanitárias.
Na mesma foto, Tapi mantém o olhar forte, decidido, sem marcas de cansaço. Há determinação na expressão de seu rosto. Como o primogênito de dez irmãos, está sendo preparado pelo pai para um dia assumir as funções de líder dos povos do Alto Xingu. Ainda tem muito a aprender. São longos os rituais e conversas ( recebia valiosos conselhos do pai), com os mais velhos.
Mas em 2020, o aprendizado foi interrompido bruscamente e adquiriu outra urgência. Salvar Aritana e os demais anciões do Xingu, infectados pelo vírus da COVID. Uma batalha perdida.
O mundo que os cercou, não soube valorizar o conhecimento que partiu com eles. Proposital ou não, promoveu um genocídio entre estes povos e devastou boa parte da memória viva, antes que tivessem tido o tempo necessário para passar todos os conhecimentos para a nova geração.
Tapi agora, um ano depois, faz valer o olhar firme da foto. No próximo setembro, depois da cerimônia do Kuarup para celebrar a morte do pai e de outros chefes, será decidido se assumirá o lugar de Aritana. Aos 45 anos, tem que ser forte como os jovens e sábio como os velhos. A julgar pelo que está estampado na foto, esta batalha ele vai ganhar.
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