Maya Santana, 50emais
Esta manhã, saí de casa, como faço todos os dias, para caminhar no calçadão. O dia luminoso era um convite. Ao longo do caminho, encontrei bastante gente, muito animada, quase todo mundo sem máscara. E lá, no calçadão, reparei apavorada, praticamente todo mundo havia dispensado a proteção facial. Antes de sair, eu tinha passado os olhos pelos jornais desta terça de carnaval. O grande assunto são as diferentes cepas do novo coronavírus que estão surgindo, inclusive aqui no Brasil. Os especialistas mostram-se preocupados, sem saber se as vacinas já existentes serão capazes de nos proteger dessas novas versões do vírus causador da Covid-19.
Olhando aquela gente descontraída, conversando animadamente, como se tudo estivesse a nosso favor, fiquei me perguntando quantas daquelas pessoas realmente têm interesse em saber, leem, buscam informações sobre a pandemia? Os números de infectados e de mortes (mais de 240 mil) crescem diariamente no Brasil. Quase um ano depois do registro dos primeiros casos no país, ainda não temos vacina para imunizar nem a camada prioritária da população. E cenas dantescas são mostradas pela televisão em hospitais, como as que vimos e vemos no Amazonas.
Sendo assim, por que tanta gente continua sem usar máscara, ignorando o perigo? Falta de conhecimento? Ignorância? Negacionismo? Quem não usa máscara não lava as mãos e, claro, despreza o isolamento social. Às vezes acho que agem assim por desconhecimento da realidade e do que o mundo e o Brasil já viveram por causa de uma outra pandemia, a Gripe Espanhola. Temos que fazer tudo para que a história tenebrosa dessa doença, sobretudo no Rio de Janeiro, então capital da República, não se repita no Brasil.
GRIPE ESPANHOLA
Sem falar na Peste Negra, entre 1346 e 1353 – a estimativa é que teria matado entre 75 milhões e 200 milhões de seres humanos -, o único outro acontecimento comparável ao momento que estamos vivendo é a Gripe Espanhola(1918-1920), iniciada no último ano da Primeira Guerra Mundial(1914-1918). Até então desconhecido, como afirma o livro A Grande Gripe, de John M. Barry, o vírus da gripe teria surgido numa base militar dos Estados Unidos e, ao final de dois anos, havia matado algo em torno de 100 milhões de pessoas no mundo inteiro. Sua disseminação foi facilitada pelo deslocamento das tropas na guerra.
No Brasil, calcula-se que tenha matado cerca de 35 mil pessoas. Em seu livro Metrópole a Beira-Mar, o jornalista e escritor Ruy Castro conta em detalhes como a Espanhola aportou aqui: “Chegou ao Rio no dia 16 de setembro, quando atracou no porto o correio britânico Demerara, vindo de Lisboa, mas com uma escala fatal em Dakar (capital do Senegal, país africano). A bordo havia duzentos tripulantes em vários estágios da doença e outros só aparentemente saudáveis. A gripe desceu do navio nos pés dos marujos que se espalharam pela Praça Mauá, rapazes que invadiram as gafieiras e beijaram na boca as mulheres que lhes abriram os braços. Em dias, os primeiros sintomas se fizeram sentir. As pessoas começaram a passar mal, a cair doentes e a morrer em questão de horas.”
SEMELHANÇA COM OS TEMPOS ATUAIS
A partir do momento em que a situação começou a se agravar, a atitude das autoridades de então e muito do que se sucedeu, Ruy Castro relata, tem grande semelhança com o que vem acontecendo no Brasil:
“O alerta demorou a ser dado. Numa cultura em que o quinino era visto, até pelos médicos, como um santo remédio, o povo depositou suas esperanças em destronca-peitos, purgantes e preparados à base de alfazema, limão, coco, cebola, vinho do Porto, sal de azedas, cachaça e fumo de rolo – o que, naturalmente, não diminuiu o índice de mortalidade. Uma instituição fornecia canja de galinha contra a gripe. Um laboratório saiu-se com um remédio homeopático, Grippina, “fórmula do dr. Alberto Seabra”. A própria Bayer passou a oferecer a aspirina Fenacetina, anunciada como “tiro e queda contra a influenza”, e prometendo “bem-estar rápido como um raio”.
Como agora, naquele tempo, houve muita informação falsa em torno da doença. No Rio, chegou a circular que a gripe era “uma arma secreta dos alemães, embutida nas salsichas”. A desinformação gerou brincadeiras até quando se descobriu que o número de mortes na cidade estava chegando a centenas por dia, com consequências trágicas: “Sem leitos suficientes nos hospitais da cidade, os doentes eram amontoados no chão das enfermarias e nos corredores. Muitos morriam antes de ser atendidos. Os hospitais foram fechados às visitas e, nos enterros, só se permitia a presença dos mais próximos.”
FORA DE CONTROLE
A falta de estrutura da cidade fez com que a pandemia fosse ficando cada vez mais fora de controle, como descreve Ruy Castro:
“Em pouco tempo, os velhos rituais – velório, cortejo e sepultamento – ficaram impraticáveis. As casas funerárias passaram a não dar conta…então, começou a faltar madeira para os caixões e gente para fabricá-los. As pessoas morriam e seus corpos ficavam nas portas das casas, esperando pelos caminhões e carroças que deveriam levá-los…nos necrotérios, os corpos jaziam empilhados por dias sobre as mesas de mármore ou no chão.” O autor continua sua narrativa macabra, explicando que os corpos recolhidos nas ruas sem identificação eram lançados em valas comuns ou incendiados.
E ele segue descrevendo as cenas de horror. “Os doentes eram tantos que muitas atividades básicas sofreram por não haver quem as desempenhasse: vender comida, transportar produtos, aplicar injeção. Sem as telefonistas para lhes dar linha os telefones ficaram mudos. E veio a inflação: um ovo passou a custar o preço de uma galinha; um pão, o de uma cesta inteira. Quando a falta de leite, carne e ovos ficou geral, começaram os saques aos açougues e armazéns – as pessoas desesperadas e tossindo, depenavam os estabelecimentos,” relata, contando uma passagem que leu em um dos livros de Pedro Nava. “Ele descreveu uma cena impressionante que vira na rua: a de uma criança esfomeada chupando os peitos da mãe morta e já em decomposição.”
Antes de começar a amainar, no final de outubro de 1918, a Espanhola matou famosos e anônimos, gente de todas as classes, pobres, remediados e ricos. Segundo o médico Miguel Couto, 600 mil habitantes foram contagiados – mais da metade da população do Rio.
Para o autor de Metrópole a Beira-Mar, “Foi um milagre que só uma fração tenha morrido.”
MAIOR CARNAVAL DA HISTÓRIA
Depois do pico da doença, o número de casos começou a diminuir. O Rio, aos poucos, foi voltando à vida de sempre. E, como para compensar o profundo sofrimento causado pela Gripe Espanhola, começou a preparar um carnaval para ficar na história, como realmente ficou. “Quem não morreu na Espanhola/quem dela pode escapar/não dê mais tratos à bola/toca a rir, toca a brincar/o Deus Momo, louco e bufo/vai começar a reinar,” dizia um trecho da marcha cantada nas ruas no começo do novo ano. “O carnaval de 1919 seria o da revanche – a grande desforra contra a peste que quase dizimara a cidade… Quem sobreviveu não perderia por nada aquele carnaval,” escreve Ruy Castro.
“Mal rompido o ano, o comércio inundou a cidade com seus artigos para o carnaval: lança-perfume, serpentina, confete, camisetas com golas náuticas, quepes, bonés, chapéus de palha, luvas, meias leques, panos africanos, miçangas, sombrinhas, ventarolas… As fantasias femininas exigiam verdadeiros conselhos de família. As revistas publicavam páginas duplas com modelos para rapazes e moças, a serem confeccionadas em casa mesmo… As fantasias podiam ser de dominó, arlequim, jardineira, diabo, morcego, caveira, índio, baiana, bebê, odalisca, palhaço… A imprensa carioca tinha mais de sessenta jornalistas especializados em carnaval: os cronistas carnavalescos. Desde janeiro, eles ocupavam os jornais, revistas, modinhas e publicações avulsas com suas notícias sobre os clubes, cordões, blocos, ranchos e Grandes Sociedades.”
PRIMEIRO CARNAVAL PÓS-COVID-19
Quando chegou a tão esperada festa, a alegria transbordou, todo mundo se esqueceu da trágica Espanhola e caiu na farra durante dias. “o carnaval ferveu nos clubes… foi intenso também nos grandes hotéis”, os granfinos se esbaldaram em Petrópolis, e os mais pobres foram para a Praça Onze, já considerado o melhor carnaval da cidade, com seus blocos, como o Kananga do Japão, o Paladino da Cidade Nova e o Rancho Rosa Branca. Era para lá que convergiam os moradores dos morros vizinhos.” Era tão grande o clima de animação que “a festa daquele ano rendeu um filme, depois perdido e nunca encontrado: o musical O Carnaval de 1919, produzido pela Nacional Film.
Ruy Castro afirma que, “na quarta-feira de cinzas, o Rio despertou convicto de que vivera o maior carnaval de sua história.” Entre aqueles que estudam a folia, muitos acreditam que o carnaval de 1919 somente poderá ser superado pelo primeiro pós-covid-19.
Será em 2022?