Independentemente de se gostar ou não de Elza Soares, como cantora ou como ativista dos direitos das mulheres, principalmente das mulheres negras, é preciso reconhecer que ela é extraordinária. Forte interiormente como um touro. Uma sobrevivente do destino duro que foi reservado a ela. Perto de completar 90 anos de vida, Elza surpreende pela energia e disposição de continuar lutando. “Precisamos gritar e muito para essas pessoas saberem que racismo existe, é forte e mata tanto quanto o vírus”, diz ela, nesta excelente entrevista a Júlio Maria, do Estadão.
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Há dias em que Elza Soares nem nasceu ainda. Está no ventre de Dona Rosária, sentindo o calor do único lugar seguro que diz lembrar ter estado antes de tudo clarear, os ruídos tumultuarem sua paz e ela vir ao mundo mais cantando do que chorando, iniciando uma contagem que daria, mais precisamente no próximo dia 22 de julho, 90 anos. “Será mais uma primavera”, ela prefere dizer, não por rejeitar os números, mas por temer as ideias que eles trazem. “Há dias em que estou no ventre. Outros que já nasci há tempos e outros ainda que acabei de nascer. Vou vivendo assim. Estou vivendo os melhores dias da minha vida.”
Elza está em seu apartamento, no Rio, cuidando-se para não contrair o coronavírus e, ao mesmo tempo, indignando-se com as massas de cariocas que vê pela TV caminhando por praias e ruas. “Essa desobediência me entristece muito.” Ela viu suas redes sociais se encherem de pessoas postando fotos a seu lado no dia em que muitos comemoram seu aniversário, 23 de junho, terça passada, mas que, na verdade, se trata apenas da data que consta em seu documento de registro. “Não importa”, ela diz. Elza está de novo no ventre, algo que sempre sente quando tem algo a anunciar.
Sua voz está em dois singles prontos para serem lançados, depois do anúncio de um filme sobre sua vida, sem prazos de finalização, em que a atriz Taís Araújo faria o papel principal. O primeiro single, Juízo Final, de Nelson Cavaquinho e Élcio Soares, sobe nas plataformas amanhã, 26. A mão dos músicos que estão ali – Pupillo (bateria), Fernando Catatau (guitarra), Guilherme Monteiro (guitarra), Sidão Santos (baixo), Marcus Ribeiro (celo), Bruno Queiroz (efeitos) e Felipe Ventura (violino), com produção de Rafael Ramos – deu peso e um contexto roqueiro para o samba de Nelson. Elza diz que era o momento de trazer de volta esses versos. “O sol há de brilhar mais uma vez / A luz há de chegar aos corações / O mal será queimada a semente / O amor será eterno novamente.” Uma canção lançada em 1973 que lhe parece urgente. “A única coisa que me dá medo é o ódio. Meu Deus, por que nos tornamos assim? O que houve com o nosso País, meu Deus?”, ela diz, com a voz embargada. “O Brasil sempre foi um país do amor, e as pessoas estão se esquecendo disso. De onde pode ter saído tanto ódio?”
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A outra faixa já pronta, também pela Deck, é a inédita Negão Negra, de Flávio Renegado e Gabriel Moura, cantada em parceria com Renegado e que virá em julho. A plataforma Spotify preparou três novas playlists sobre a cantora: Elza Soares Samba, Elza Soares Amor e Elza Soares Protesto, reunindo canções de sua trajetória dos anos 60 até hoje. Uma categorização que faz lembrar que, nos últimos anos, mais precisamente desde 2015, quando lançou o elogiado A Mulher do Fim do Mundo, e depois com Deus é Mulher (2018) e Planeta Fome (2019), Elza nunca mais sambou. Sua musicalidade, sorvida pelos recentes produtores, serviu a uma canção beligerante e denunciativa, envolvida no contexto de um recrudescimento das questões raciais que, muito antes de recrudescerem, a perseguem desde o nascimento. Por isso, a denúncia feita por sua voz é um assombro de estremecer fantasmas racistas. “Coitadismo? Onde?”, diz, sobre as declarações do presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, de que as alegações de racismo no País seriam frutos de um vitimismo do povo negro. “Precisamos gritar e muito para essas pessoas saberem que racismo existe, é forte e mata tanto quanto o vírus. Ouvir isso é um absurdo.”
E a outra Elza? A dos sambas e das gafieiras, a que gravou Se Acaso Você Chegasse em um álbum espetacular de 1968 com o baterista e compadre Wilson das Neves, feliz, sacolejante, trompeteando os vocais e improvisando como uma jazzista, essa Elza não volta mais? Ela diz que não. “Não volta. Estamos vivendo uma época em que isso seria impossível. Aquilo é lindo, mas está lá, já foi feito.” Ela sabe que fez uma escolha, abrindo mão muitas vezes da própria canção para se tornar mais do que uma cantora, uma mensagem, um veículo. “Vale a pena sim. Seria impossível calar agora, é preciso fazer isso.” Mas ela cala quando a pergunta é sobre como avalia a gestão do atual presidente, Jair Bolsonaro. Cala como que para falar pelo silêncio. “Não, não quero falar disso. Coisas boas virão. Prefiro falar de mim.”
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Elza diz que passa horas de sua quarentena ouvindo música. Conta que segue consumindo muito João Gilberto, Caetano Veloso, a quem chama de “o homem que me faz feliz”, Chico Buarque, “meu amor, meu xodó”, e, das gerações mais jovens, Negra Li. Fala que continua se inspirando em Chet Baker e Ella Fitzgerald, o que a faz sentir uma saudade imensa do palco, onde sua alma fica em festa.
A pergunta então é se Elza, levando a voz para onde sempre levou, usando os recursos das mulheres da música negra norte-americana dos anos de 1960, como os drives distorcidos de Etta James, e improvisando sobre escalas de blues como uma Marva Wright de New Orleans, se ela, Elza, nascida em Moça Bonita, Bangu, empregada doméstica ainda adolescente antes de ser descoberta por Moreira da Silva cantando no Texas Bar, se ouviu blues ou jazz na adolescência. “Nunca ouvi, o blues não chegava a mim. Mas eu carregava latas d’água na cabeça gemendo de dor, e esse era o meu blues. O som da dor que eu carrego até hoje.”
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Ela não gosta da palavra saudade, como se fosse um gatilho a trazer a tristeza de suas maiores perdas. O filho, a mãe, Garrincha, o amor de sua vida. Mas diz só dizer essa palavra para falar de 1970, quando o Brasil voltou do México como o tri campeão mundial, há 50 anos. “Éramos felizes e não sabíamos”, ela diz, provavelmente com memórias que impediam sua felicidade absoluta, imagens de Garrincha sofrendo pelo alcoolismo, e de si própria, amargando uma perseguição pública e por parte da imprensa. Elza ficou com Garrincha quando ele ainda era casado, e se tornou uma vilã declarada, como conta em sua biografia, escrita pelo jornalista Zeca Camargo. “Eu estava em uma loja na Barata Ribeiro com as crianças e sem o Mané, comprando roupas para os meus filhos irem ao colégio. De repente, eu percebi uma gritaria do lado de fora e, quando vi, já tinha gente jogando pedra na vitrine, balde d’água pela porta da loja, uma confusão. Queriam minha cabeça, foi horrível. Tivemos de sair pela porta dos fundos.”
Antes de se tornar cantora na noite, para o desespero da mãe, Elza trabalhava em uma casa de família. Assim que conseguiu um palco, o do Texas Bar, vivia um drama para conseguir ser mãe ao mesmo tempo. “Eu cantava até as 4h da manhã, pegava um par de ônibus para voltar para casa e, quando chegava, as crianças estavam acordando para irem para escola – era o único momento do dia em que eu ficava com meus filhos”, diz, na biografia.
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Ainda assim, com tudo o que poderia devolver em amargura ao mundo que sempre a maltratou, Elza diz que tudo isso, na verdade, a amaciou. “A vida me bateu bastante, nunca me ofereceu nada com facilidade. Mas, engraçado, isso tudo me deixou mais leve.” Ela diz que a chave para se vencer o racismo, mais do que investir em educação ou em qualquer estratégia social, partiria de uma pergunta que todas as pessoas deveriam fazer a si mesmas. Afinal, o que me faz ser melhor do que alguém? A cor da minha pele? “Quando soubermos que não somos nada, e que somos todos iguais, seremos mais leves, teremos mais amor e voltaremos a ter esperança.”