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A grande ironia desta história triste é que Vilma Nascimento, porta-bandeira histórica da escola de samba da Portela, estava voltando de uma cerimônia na Câmara dos Deputados, onde havia sido homenageada, como parte dos eventos que celebram o mês da Consciência Negra.
Aos 85 anos, passou pelo constrangimento de ter que mostrar o que levava em sua bolsa, para assegurar, como exigia a segurança da Duty Free Shop, que não havia se apoderado de nada da loja.
O acontecimento, principalmente por se tratar de uma octogenária, foi parar nos jornais do Brasil inteiro. Um absurdo é o que se pode dizer dessa história, envolvendo uma senhora reverenciada pela artista que é.
Quando será que vamos conseguir dar um basta no racismo, esse horror que só nos diminue como Nação?
Leia mais sobre quem é Vilma Nascimento neste artigo do Blog do Acervo, de O Globo:
Vilma Nascimento tinha 16 anos quando trabalhava com o produtor Carlos Machado, conhecido como o “rei da noite” no Rio, na boate Night and Day, onde a adolescente dançava com a bandeira da Portela. Ao saber disso, o bicheiro Natalino José do Nascimento, conhecido como Natal, patrono da escola de samba de Madureira, foi até a badalada casa noturna na Cinelândia para tirar satisfações.
Só que ficou tão encantado com a performance de Vilma que decidiu chamá-la para ser a porta-bandeira oficial da agremiação. A garota recusou e deixou o cidadão falando sozinho, mas, em 1956, um namorado levou a moça para conhecer sua família. Qual não foi a surpresa dela ao entrar na casa?
“Conheci o Mazinho depois daquela noite na Night and Day. Quando entrei na casa dele para conhecer os pais, vi que era o Natal. Resultado: Em 1957, aos 19 anos, desfilei como porta-bandeira da Portela e, em 1958, me casei com o Mazinho”, contou Vilma durante uma entrevista ao GLOBO em 1988, quando ela já havia alcançado a posição de mito do carnaval do Rio, depois de receber 15 notas 10.
Chamada de Cisne da Portela devido à graça de seus movimentos, a ilustre filha de Madureira, hoje aos 84 anos, se tornou um dos assuntos mais comentados na internet nesta sexta-feira, depois de ter sua bolsa revistada numa loja do aeroporto de Brasília, ao voltar de um evento na Câmara dos Deputados em homenagem ao Dia da Consciência Negra, celebrado na última segunda-feira.
O episódio foi todo gravado por sua filha Danielle e, em seguida, divulgado nas redes sociais. De acordo com a família, Vilma foi alvo de racismo. Rapidamente, as imagens se tornaram virais, motivando críticas de quem considera a situação um desrespeito com a histórica passista do carnaval carioca.
Vilma tinha 7 anos quando estreou como porta-estandarte do Bloco Unidos de Dona Clara e como cabrocha no Recreio das Bonitonas. Mais tarde, entrou para a escola de samba União de Vaz Lobo como porta-bandeira e se saiu tão bem que recebeu convite para integrar o grupo do coreógrafo Carlos Machado, onde foi “descoberta” por Natal.
Na Portela, a dançarina alcançou o olimpo do carnaval. Além das 15 notas máximas, a porta-bandeira celebrou oito títulos de campeã do carnaval defendendo a escola do bairro onde nasceu e levou para casa cinco Estandartes de Ouro. Além de colecionadora de troféus, ela se tornou uma revolucionária ao romper com diversos padrões da avenida.
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Vilma ousou desfilar sem peruca, com penteados em seu próprio cabelo — uma vez, coloriu a cabeça toda de prateado. Na fantasia da porta-bandeira, adicionou fitas de aço debaixo da anágua para deixar a saia armada e realçar o seu bailado. Foi quem insistiu para seu figurinista criar o talabarte, uma faixa com uma espécie de copinho na ponta, onde encaixava o mastro de sua bandeira. Em 1978, foi a pioneira a se apresentar com a saia toda coberta de plumas, amarelas.
Mas sua trajetória de sucesso não se deu sem alguns sustos, e até tristezas, ao longo do caminho. Um dos momentos de maior tensão foi o carnaval de 1966. Segundo Vilma, a águia da Azul e Branco já estava entrando na passarela quando ela ainda terminava os últimos bordados da fantasia. Ao chegar na concentração, soube que Natal tinha arrancado a roda de um carro alegórico para alegar que havia se quebrado e atrasar o desfile.
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O bicheiro disse que quase teve um infarto quando viu a nora. Em outro desfile, a barra da sua saia enganchou em um broche do sapato. Ela ficou presa, sem sequer conseguir andar, até que o mestre-sala Benício improvisou um movimento, se abaixou e deu um puxão. “Saímos rodando como se nada tivesse acontecido, mas um momento horrível”.
Agora, tristeza mesmo Vilma sentiu em 1979, quando deixou a Portela depois de se desentender com a diretoria. Ela saiu dizendo que jamais desfilaria como porta-bandeira em outra agremiação e, de fato, ficou oito anos sem ocupar essa posição. Mas, em 1988, aos 49 anos, após insistentes pedidos de seus amigos e familiares, inclusive dos três netos, Vilma decidira voltar de forma triunfal ao posto de porta-bandeira, defendendo a Tradição, escola que ajudara a fundar com outros dissidentes da Portela em 1984. Ela foi recebida com chuva de espumante na avenida e acompanhada por vários jornalistas. No fim do desfile, deixou que o então senador Fernando Henrique Cardoso e saiu ovacionada.
“Segredo de porta-bandeira? Muito charme, muito sorriso”, resumiu o Cine da Passarela, que, durante o carnaval deste ano, desfilou na Portela, caracterizada como porta-bandeira, para celebrar o centenário da escola cuja história ela ajudou a forjar e que jamais deixou de amar.
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