Márcia Lage
50emais
Entre todos os motivos que tenho para não morrer, encontrei mais um: quero ser uma das primeiras passageiras do trem-bala que vai ligar Rio de Janeiro e São Paulo.
Se o benefício do idoso me garantir gratuidade nessa maravilha, é capaz de eu ficar pra lá e pra cá no barrigão do bicho, até me curar da enorme frustração de morar num país que negligencia tanto essa modalidade de transporte.
Corremos par a par em direção à esse futuro que nunca chega. O projeto do trem, ainda em estágio de prospecção de recursos e estudos de engenharia só começa a ser viabilizado em 2027. Até lá já estarei com 72 anos.
Enquanto a empresa responsável pela obra cava túneis, constrói viadutos, retira moradores das margens da ferrovia, aproveita a infraestrutura existente ou faz outra inteiramente nova, eu estarei malhando, tomando vitaminas e jogando Soduku para manter corpo e mente preparados para a grande entrada do país no século XXI.
Isso só vai acontecer, se tudo correr bem, no ano 2032. Já estarei com 77 anos. Espero que o Pilates mantenha minha altura atual, que é de 1.50m, e as pernas flexíveis para que eu possa subir no trem vestida de Rainha Elizabeth.
Sim, vou criar um modelito à altura da ocasião. Só não vai ser verde e amarelo, por motivos óbvios. Talvez vermelho ou azul turquesa, com chapéu e luvas da mesma cor.
A construção do primeiro trem-bala brasileiro é um feito tão atrasado no tempo que merece esse figurino vintage, vagões exclusivos para idosos com serviço de chá e outros mimos para nós, que nascemos e vamos morrer, talvez, sem ter o prazer de desfrutar de uma viagem segura, confortável e rápida entre as duas principais capitais do país.
Se houver atraso nesse cronograma – e sempre há, de anos e até de décadas – e eu morrer no meio da obra, juro aqui na presença de todos que vou virar assombração.
Com meu figurino vintage, aparecerei para o presidente em exercício que paralisar a obra; para empresários corruptos que quiserem aumentar o orçamento de 50 bilhões e para deputados e senadores que desviarem recursos do projeto visando sei lá o que.
Serei uma fantasma atormentadora e nem mesmo reza brava vai me fazer subir. Enquanto o trem não sair do lugar, me levando em uma hora e quarenta e cinco minutos de um ponto a outro, não darei sossego aos detratores do projeto.
Se viva estiver quando o trem começar a funcionar, irei todo fim de semana ao Rio ou a São Paulo, para pegar um cineminha, um Chopp na praia, um show em Copacabana, uma exposição no Masp.
Espero, inclusive, que essas fontes de lazer ainda existam até lá – pois tudo que era do nosso tempo se extingue conosco, gradativamente. Porém, se não aguentar esperar mais tantos anos, embarcarei meu espírito nesse progresso (que já será coisa ultrapassada), e ficarei quietinha na primeira classe, só no desfrute.
Depois aceitarei meu fim, indo descansar num paraíso verde onde possa me deslocar da forma que mais desejo: pela desmaterialização. É só pensar num lugar e pum! Desembarco lá, sem lenço nem documento.
Só assim para conhecer o mundo todo com meu salário de aposentada, cada vez mais incompatível com o preço das passagens, dos hotéis e dos trens-bala dos países que estão alinhados com o presente.
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