Uma crônica sobre um assunto sempre muito atual: a mudança nas relações à medida em que vamos caminhando na vida. Embora nem sempre a gente preste atenção, tudo muda continuamente, inclusive nós mesmos. Se as mudanças são boas ou ruins, isso é outra história. Com a maturidade, essa constatação é inevitável. Por isso me interessei por esta crônica de Martha Medeiros, publicada em O Globo. Essa fala de uma experiência pessoal.
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Relacionamentos são como pessoas, envelhecem de modo imperceptível, a mudança inevitável se diluindo na passagem dos anos. Mas às vezesA travessia da Golden Gate é um pouco maior que uma volta na Lagoa. Chega-se até a ponte por uma ladeira cortando o parque chamado Presídio, e foi ali, no topo da pirambeira, que ele focou num cone de tráfego, e revelou: “Eu tenho medo de altura.”
“Você?”, perguntei, espantada.
Na vida a dois, há detalhes sobre o outro que jamais saberemos. Por exemplo: eu precisaria estar com meu marido numa performance de bambolê no Havaí, para saber quantas voltas com o aro ele é capaz de dar, enquanto havaianas adornam-lhe o pescoço com colares de hibiscos. Mas medo de altura é informação básica, destas que se revelam no começo do namoro, como detestar pimentão ou chorar ao ouvir Cartola.
A questão é que não era revelação tardia. Era acrofobia recente, num marido que eu, distraída, ainda não havia creditado à meia idade. Ele envelhecia, nós envelhecíamos, a travessia da ponte emperrada por limites recentes.
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Ele decidiu prosseguir. E lá se foi a família de latinos. Meu filho desembestado, atravessando a ponte como se estivesse numa ergométrica. Minha filha pedalando como vivemos: com esforço e sem jeito, avante e sempre. Eu, imbuída da essência feminina, anulando-me. Preocupada com o filho sumido entre os turistas, a filha quase caindo, o marido em pânico, caminhando com as mãos agarradas ao guidão, olhos fixos nas rodas dos carros. Ele poderia estar na Avenida Brasil. Ele poderia estar na Transamazônica. Ele poderia estar num videogame.
À direita, a estrutura vermelha da ponte contrastava com o azul escuro e denso do Pacífico, barquinhos cortavam a água, gaivotas passavam no céu, havia golfinhos, farol, Alcatraz e São Francisco. À esquerda, meu marido olhava rodas. é possível notar um cabelo branco, a ruga recente, um algo qualquer da velhice, inédito por um instante e no seguinte definitivo, irrevogável.
O meu relacionamento envelheceu um pouquinho às dez e meia da manhã da quarta-feira da semana passada, em São Francisco, de frente para a ponte Golden Gate. Éramos, até então, o casal aventureiro que atravessou a ponte de bicicleta na década anterior, e que retornava fortalecido e maior, nas duas crianças de capacete dispostas a fazer o mesmo percurso.
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Ventava. Fazia frio. Uma névoa densa cobria a cidade. “Não sei não”, disse meu marido. Eu: “Vai melhorar.” Ele: “Vai chover.” Eu: “Na Califórnia não chove.” Ele coçou a barba, olhou a ponte: “Não sei não.” Era um momento de metáfora pronta. Estivéssemos numa bicicleta dupla, eu pedalaria para frente e ele para trás.
Vendo rodas ele chegou do outro lado, lábios trementes por um choro contido. Ganhou abraço. Não há nada mais sexy que um homem vulnerável, já disse a ele mais de uma vez. Homem vulnerável é como bolo de padaria sem a cobertura enjoativa de glacê com anilina. Fica muito melhor.
Talvez tenha sido por esta falácia masculina, de que homem não pode sentir medo, que ele tenha atravessado a ponte. Ou a criação cubana, frugal e austera, que impediu o desperdício do aluguel das bicicletas. Ou simples desejo de superação. Homens não falam. Mulheres constroem hipóteses, arranjam motivos, se decidem por um ou por todos e contam histórias, baseando-se no que sabem e inventam.
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