Rita Lee é realmente uma pessoa afortunada por ter tudo que tem, inclusive o respeito e a admiração de boa parte dos brasileiros. Nesse 31 de dezembro, quando completa 73 anos, ela diz que está vivendo a velhice que sempre sonhou, ao lado do marido de quatro décadas, Roberto Carvalho, de plantas e dos muito animais de que cuida no sítio em que se refugiou, perto de São Paulo, há oito anos. Para celebrar mais um aniversário, no último dia de um ano tão peculiar como foi esse 2020, postamos esta entrevista, feita por Pedro Antunes, para o Uol.
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Há 40 anos, Rita Lee torcia por um futuro melhor. Não queria luxo. Não queria lixo. Pedia por saúde. “Pra gozar no final”. É intrigante e poético encarar o tempo. Um senhor que se recusa a parar, implacável e inevitável. Inspirador, também.
Assim fez Rita Lee no álbum homônimo, mas mais conhecido como “Lança Perfume”, lançado em 1980, com a música “Nem Luxo, Nem Lixo”.
Quatro décadas depois de escrever e cantar sobre o futuro em um disco histórico, Rita está aqui e goza o agora aos 73 anos de idade, completados hoje (31). Deixou os palcos, vive com o marido, músico e produtor Roberto de Carvalho, curte netos e a chegada da velhice escancarada pelos fios brancos não mais tingidos com a icônica coloração vermelha.
“Os deuses me ofereceram uma vida inesquecível e generosa, desde a família em que nasci até a família que tenho hoje. A experiência que tive neste planeta foi um aprendizado espiritual precioso. Agora, vivo a velhice que sempre sonhei: morar no mato cercada de plantas e bichos, na companhia de Roberto, meu namorado há 44 anos, melhor parceiro musical, pai dos meus três filhos lindos e avô de meus dois netos fofos. Because I’m happy…”
Rita é uma das artistas brasileiras mais deliciosas de se entrevistar. Mesmo em um papo virtual, por e-mail. O que poderia ser uma aparente frieza é transformado em uma troca afetuosa. É de ler cada palavra e ouvi-la sendo dita. Algo mágico, mesmo. E, descolada, usa até emojis nas respostas.
Rita Lee e Roberto de Carvalho toparam conversar com a coluna com o gancho dos 40 anos de aniversário do álbum citado acima, doravante chamado de “Lança Perfume” para evitar confusões. O disco ganhou uma reedição comemorativa, em vinil (com a bolacha translúcida, linda demais), pela Universal Music.
O álbum “mudou” de nome graças ao pop efervescente e carnavalesco da primeira faixa do álbum, a música “Lança Perfume”, é claro, uma faixa que estourou no Brasil, mas também fora, em lugares como França e Estados Unidos.
Foi um disco importante para a carreira de Rita e de Roberto de Carvalho. Depois de Rita revolucionar a Tropicália com Os Mutantes e de fazer ruído com a fase roqueira solo, ela e Roberto prepararam “Lança Perfume”, um disco bem blockbuster com músicas pop de DNA brasileiríssimo.
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É um álbum tão solar quanto aquele fenômeno do sol da meia-noite nos países nórdicos – quando a luz do sol dura 24 horas. “Lança Perfume” é, 40 anos depois, um disco de hits. Você pode cantar o álbum do começo ao fim mesmo que não seja especialista na obra de Rita Lee. “Bem-Me-Quer”, “Baila Comigo” (escrita em cinco minutos, após um sonho), “Caso Sério”, “Nem Luxo Nem Lixo” são deliciosas, irônicas, lascivas, rebeldes.
É também um disco sobre amor. Sobre a paixão arrebatadora que uniu Rita e Roberto até hoje (eles iniciaram o romance quatro anos antes do lançamento deste álbum).
Rita e Roberto, o casal mais genial e inspirador da música brasileira, responderam às questões sobre o álbum quarentão em meio às declarações fofas como “minha mulher é gênia” e “dona da voz mais sexy que conheci na vida”, e informações de que músicas inéditas estão prestes a sair do forno do sítio onde moram.
Pareceu-me uma boa ideia encerrar o 2020 desta coluna, iniciada em meados de outubro, com uma entrevista deliciosa e exclusiva com esse casal de bambas. Foram enviadas 5 perguntas para cada um deles. Vamos a elas?
Rita, se o álbum ‘Lança Perfume’ fosse uma pessoa, como seria? Em 2020, aos 40 anos, teria filhos? Passaria pela crise dos 40? Consegue fazer um exercício de imaginar esse disco como alguém em carne e osso?
Roberto, em 1979, muito se falou do álbum “Rita Lee” (mais conhecido como “Mania de Você”), O que sentiu quando terminaram o disco sucessor, esse que também tem nome de “Rita Lee”, mas que é mais conhecido por “Lança Perfume”?
Roberto de Carvalho: “Bom, o disco Mania de você foi um verdadeiro tsunami, as músicas estavam em toda parte, as pessoas cantavam, as rádios tocavam sem parar, o disco vendia a rodo e, o mais importante: tocou profundamente os corações de tantas pessoas numa época tão difícil de repressão ostensiva, de pouca liberdade. Nós mesmos vindo de uma situação de prisão, restrição física e psicológica, tendo que submeter as músicas à censura que muitas vezes as vetava dificuldades financeiras, enfim problemas de todo tipo.”
“Eu, lidando com a expectativa do que resultaria no fato da Rita, que já vinha de uma carreira de sucesso, já uma estrela, se juntando a mim na música. Teria sido terrível se o resultado fosse um flop. No fim, conseguimos nos livrar de estereótipos que já vinham projetados nela, construímos uma obra musical original, longe de ser algum repeteco requentado do que ela vinha fazendo antes. O resultado foi espetacular. E tudo aconteceu organicamente, sem estratégias, até porque nunca fomos muito bons de estratégias. O que fazíamos era trabalhar incansavelmente em músicas, discos, shows, especiais, enfim…
Já no Lança Perfume existia à nossa volta a expectativa de que não conseguíssemos repetir a proeza. E o resultado foi um segundo tsunami musical, bem mais forte do que o primeiro. Foi tudo feito com muito tesão, alegria, inspiração, músicos incríveis, uma conjunção rara de fatores diversos.”
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Rita, muito se fala em pop quando se trata do disco “Lança Perfume”, não é? Para mim, esse é o gênero musical mais fluído que existe, porque pode ser um tanto de coisa. O que é ser pop para você?
Rita Lee: “Pop é tudo o que bate direto no coração.”
Roberto, perguntei isso para Rita, mas também queria ouvir de você. O que é o pop? Roberto de Carvalho: “A pedra fundamental de pop, para mim, foi Beatles, que ouvi pela primeira vez aos 12 anos e fui imediatamente conquistado. E justamente pela diversidade, pelo ‘é proibido proibir’, qualquer gênero de música cabia. Meu instrumento era o piano, que toco desde criança, mas depois de Beatles tive que ir para a guitarra, e aí entrou Stone na equação. Mais tarde Santana. Sempre com João GIlberto, Caetano Veloso, Gilberto GIl, e muitos outros, rodando a toda na vitrola. E muita música de muitos países e épocas diferentes, música clássica, latina (me gusta mucho), etc. Um liquidificador pop.”
“Pop é popular, é o que nasce num nicho e conquista o mainstream. Quando eu era novo, pop era quase uma casualidade, espontâneo. Com o tempo foi se transformando numa estratégia. Mas, ainda assim, com grande nível de organicidade, porque depende de consagração popular. As pseudoelites têm a tendência macabra de desqualificar o que se torna popular. Entre roqueiros xiitas, a gente vê uma quase repulsa ao pop. Nos anos 60, os jazzistas viam o rock com essa mesma repulsa, como uma submúsica. Tudo parece mudar para no fim dar no mesmo ‘vício’, o sectarismo. E viva o pop, o rock e viva todo tipo de música.”
Rita, falando sobre o álbum ‘Lança Perfume’, eu sinto muito amor emanando neste disco. Coisa de pele, coisa de sonho. Qual é o fio que guia essas músicas, se é que ele existe. Como descrevê-lo?
Rita Lee: “Eis aí um exemplo do que é pop (risos)… Sensual, ousado, romântico, sonhador, poético, sarcástico e bem feito”
Roberto, como falávamos, esse disco “Lança Perfume” emana tanta liberdade estética e sonora. Não por acaso, é considerado uma pedra fundamental do pop. Com a perspectiva do hoje, com essas décadas passadas, qual foi a importância deste álbum para a música brasileira?
Roberto de Carvalho: “Enorme. Sendo Rita uma mulher com um discurso libertário, hedonista, não intencionalmente feminista, empoderador, dividindo as delícias de uma relação de amor sem nenhum pudor, mas com profundo talento e bom gosto, dona da voz mais sexy que conheci na vida. Se reinventando e se superando. Brilhando num território encharcado de misoginia, sectarismo e ufanismo destrambelhado. Minha mulher é gênia. O conjunto da obra é prova disto. Do ponto de vista musical, é um encontro de uma tradição São Paulo, representada pela Rita, DNA americano e italiano, e Rio de Janeiro, representada por mim, DNA brasileiro de muitos séculos, carioca, paulista, baiano e mineiro. Os dois com bagagem musical eclética.”
Rita, a história deste disco conta que “Baila Comigo” é uma música que veio em um sonho. Isso me parece tão mágico. Sonhou, escreveu e, em cinco minutos, a faixa estava pronta. Isso era comum contigo? E hoje, ainda sonha com músicas novas?
Rita Lee: “Quando dormimos, viajamos para dimensões astrais onde sonhos são tão reais que nos fazem perceber que aqui na Terra tudo não passa de ‘maya’, uma ilusão. Volta e meia, acordo cantarolando pedaços de letra ou melodias tipo mantras e vou correndo anotar.”
Roberto, você falava sobre como esse disco apontava para diferentes estéticas sonoras. O que guiava vocês nesta concepção estética na época? Vocês gravitavam em torno de algo ou alguma ideia?
Roberto de Carvalho: “A ideia era fazer o que desse prazer. Nós morávamos numa casa no Pacaembu, vivendo uma intensa paixão, com dois filhos pequenos e tínhamos instrumentos por toda parte, então, era música sem parar o tempo todo. Nas músicas que iam surgindo, a inspiração, os personagens, os temas, éramos nós mesmos.”
Rita, em “Nem Luxo Nem Lixo”, você falava sobre um futuro, não é? Claro, a música tem todo o lance de tratar do Brasil de 1980, as questões sociais e políticas da época, mas também há uma perspectiva de ‘como quero estar em sei lá quantos anos’. A Rita de hoje, imagino, não vive de luxo nem de lixo e tem saúde pra gozar no final. Está feliz com como as coisas se desenrolaram nesses 40 anos até a sua existência em 2020? Rita Lee: “Os deuses me ofereceram uma vida inesquecível e generosa, desde a família em que nasci até a família que tenho hoje. A experiência que tive neste planeta foi um aprendizado espiritual precioso. Agora, vivo a velhice que sempre sonhei: morar no mato cercada de plantas e bichos, na companhia de Roberto, meu namorado há 44 anos, melhor parceiro musical, pai dos meus 3 filhos lindos e avô de meus 2 netos fofos. Because I’m happy…”
Por fim, Roberto, é o amor que transborda pelos versos e melodias deste disco. É uma história de amor e também de uma parceria musical, certo? Como você falou há pouco, vocês, dois filhos, muita paixão. Esse amor segue dando frutos musicais? Eventualmente levaremos um susto de uma música nova de vocês, ou disco, chegando às plataformas digitais?
Roberto de Carvalho: “Amor não acaba, se acabar não é amor. Bom, é o seguinte: o Beto, nosso filho mais velho, está com um show pronto que já teria estreado não fosse a pandemia, que homenageia nosso repertório. O máximo. Chama-se “CeLeebration”. O João, filho do meio, está terminando um projeto na Umusic, produzido por ele, de remixes de músicas nossas, feitas por DJs nacionais e internacionais. Está sensacional e logo vai entrar nas plataformas. Acho que isso tudo nos motivou e gravamos uma música nova, produzida pelo Gui Boratto. Está pronta. Não sei ainda quando vai ser lançada. E, é claro, bem pop. E nada impede que outras venham na sequência.