Márcia Lage
50emais
No caminho da Yoga há um jardim. Nele, um arbusto que me encanta. Desde agosto está coberto de flores, uns pompons amarelos que fascinam ainda mais os colibris.
Esperava encontrar um dia a dona do jardim, para falar de flores e pedir uns daqueles pompons para compor um Ikebana, singelo arranjo floral de origem japonesa, que é arte e filosofía ao mesmo tempo.
Numa manhã chuvosa, o jardineiro estava lá. Abordei-o sobre as flores e perguntei se me daria umas cinco, para o ikebana que tinha em mente. Ele foi até à patroa para obter autorização e ouvi da rua o decepcionante não.
Quando o jardineiro voltou para me dar a resposta eu já estava tomada pelo desapontamento e respondi bem alto: “Diga a ela que é dando que se recebe, é perdoando que se é perdoado, e é morrendo que se vive para a vida eterna, amém”!
Segui para a Yoga com todos os chacras desalinhados. Enquanto me esforçava nos Ásanas e retomava o equilíbrio, associei o não da flor aos inúmeros nãos que distribuímos diariamente.
Na noite anterior, eu havia negado uma moeda a um rapaz. Expliquei que não tinha. Era verdade. Ele me respondeu: “Deus te pague assim mesmo. Vá em paz”. Não senti ironia nem vingança na resposta dele, mas a minha citação de São Francisco era rancor grosso lançado na cara da dona do jardim.
Para justificar minha indignação, comecei a dizer a mim mesma que pedir flores não é ofensivo. Pior é roubá-las, o que eu poderia fazer a qualquer hora do dia, uma vez que parte do arbusto florido se debruça para a rua e a dona jamais veria, oculta como vive. Porém, roubar é desvio de conduta que não autorizo a mim.
Hoje, se rouba uma flor. Amanhã, se dá um calote em alguém Depois de amanhã, começam as pequenas corrupções e, se se chega ao poder, rouba-se a um povo e a uma nação. Tenho responsabilidade sobre meu carma. Quero quitá-lo antes de morrer, para não reencarnar em país como o nosso. Nem neste planeta, se conseguir merecimento.
Mas a história não terminou. Mesmo depois da Yoga, continuei com uma ponta de tristeza por terem me recusado flor. Passei na casa de uma amiga e lhe pedi três bastões do Imperador. Contei antes a história, para lhe amolecer o coração. Ela perguntou: “Três? Para que isso tudo? Só dou uma”! Três era o número que eu precisava para o Ikebana. Não pedi nem mais, nem menos. Ela me deu dois.
Coloquei na bicicleta e quando cheguei em casa dei-me conta de que um bastão havia caído. Voltei para encontrá-lo e o achei esmagado na lama do dia, por um motorista despreparado para enxergar flor na rua.
Conclusão: se tudo é tão transitório e impermanente, para que tanto apego? Fiz o arranjo com o bastão sobrevivente e mandei foto para minha amiga, para agradecer pela felicidade que me havia proporcionado.
À medida que trocávamos mensagens sobre tão banal assunto, o cinza do dia se desvaneceu.
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