Ingo Ostrovsky
50emais
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“Ah meus Deus que bom seria, se voltasse a escravidão…”
Você consegue imaginar alguém cantando uma frase dessas hoje em dia? Pois ela foi escrita pelo ínclito Ataulfo Alves e fazia parte de um dos maiores sucessos de Elza Soares, “Mulata Assanhada”.
Como pode alguém achar que seria boa coisa a volta da escravidão? O negro Ataulfo não era racista, longe disso, e na fantasia dele, a volta da escravidão permitiria ‘amarrar’ aquela assanhadíssima mulata ao seu coração… Quem é que vai reclamar disso? A mulata, no caso a guerreira negra Elza Soares, reclamou. Depois de imortalizar a música com interpretações riquíssimas, rasgou a canção do seu repertório, jogou no lixo, nunca mais cantou, nem que a platéia implorasse. Elza foi mudando junto com o mundo.
Outro artista negro, Itamar Assunção, gravou “…se voltasse a escravidão” em 1995, num disco sensacional, em homenagem a Ataulfo. Não me lembro de ter provocado o escândalo que hoje até O Teu Cabelo Não Nega provoca. A palavra mulata ficou difícil de usar.
Outros tempos.
O mesmo Ataulfo, aliás, compôs com Mario Lago um dos maiores sucessos do nosso cancioneiro, “Saudades da Amélia” (simplesmente Amélia hoje em dia) aquela que “não tinha a menor vaidade e era mulher de verdade”. Imagine uma feminista da segunda década do século 21 cantando essas palavras. Escândalo!
Tudo isso me vem à mente na semana em que Chico Buarque anunciou que está renegando um de seus maiores sucessos, a linda “Com Açúcar, com Afeto,” composta por ele a pedido de sua amiga Nara Leão. Ele contou essa história ao repórter e diretor Renato Terra na gravação do imperdível documentário O Canto Livre de Nara Leão. Chico aceitava encomendas e a de Nara foi precisa: uma música que contasse as agruras de uma mulher que fica em casa enquanto o marido vai pra rua se divertir. Quando ele volta, geralmente embriagado, é recebido com “seu doce predileto, feito com açúcar e com afeto”.
Isso é crime de gênero hoje em dia? Longe de mim acreditar que os homens agora se comportam impecavelmente e ficam em casa agarradinhos com as esposas. Cantar o oposto disso é que ficou difícil. Muita gente vai me dizer que são as mulheres que atualmente vão à rua se divertir… e que se dane o que pensam papai e mamãe – ou vovô e vovó, dependendo da geração.
Chico argumenta que as feministas de hoje tem razão, mas que naquele 1967 ninguém pensava nisso. Ou, pelo menos, não pensava dessa maneira. O que estamos testemunhando é uma revisão do passado, um passado nem tão distante mas com valores diferentes dos que hoje norteiam a vida como ela é. Na política isso já se chamou ‘revisionismo’, não sei como se chama agora.
Se a moda pega, teremos que colocar sob lupa cada coisa…
Relembre. Uma preciosidade:
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