Márcia Lage
50emais
De mãos dadas, vamos galgando o topo da montanha, nada muito alto nem muito íngreme. Apenas uma trilha para avistamento da paisagem urbana, num parque urbano que é um respiro de natureza em meio ao trânsito barulhento e o calor infernal.
No princípio, ele chorou, fez birra. Disse que não ia subir o morro de jeito nenhum. Com tato, o convenci da beleza do passeio, mostrando as raízes que as árvores gentilmente estendiam no caminho, para servir de escada. Expliquei que as folhas secas eram escorregadias. Aí, ele descobriu a graça de deslizar sobre elas, agarrado à minha mão.
Atrás de nós vinham o pai, a avó e seu irmão. Ambos na feliz idade da infância. Chegamos ao primeiro platô. Apreciamos a vista, reconhecendo a cidade. Tiramos fotos, os muques erguidos em sinal de vitória. Mais dois platôs e alcançamos o topo. Comemos castanhas. Bebemos água. E começamos a descida.
Ele já estava todo metido. Colou-se à frente da pequena trupe e disse que era o guia. Dei-lhe a mão novamente e ele disparou: Sabia que eu fui guia em todas as trilhas do planeta? Ah, é? Até nas trilhas do Tibete? Sim, claro. Com neve e tudo? Com muuuuita neve! E como se deu isso se você só tem cinco anos?
– Eu cresci na floresta. Conheço todas as árvores, todas as flores, todas as frutas e todos os bichos. Sou amigo dos animais, fui criado por eles. Minha mãe era uma loba. A gente fez todas as trilhas do universo. Quando meu pai me encontrou eu já sabia de tudo.
O pai pergunta lá de trás: e como foi que seu irmão apareceu?
– Ele era um guerreiro e venceu todas as batalhas mundiais. Chegou na floresta depois da última guerra. Estava muuuuuito cansado. Nós cuidamos dele e ai você chegou e pegou nós dois.
– Ah, bom.
Chegamos ao pé da montanha e o irmão ralou a canela ao subir numa pedra. Deixa comigo – ele falou. Sou um curandeiro poderoso, aprendi na floresta com os xamãs.
Catou uma folha seca no chão e seguiu com ela até a casa. Rasgou, amassou, misturou tinta azul e derramou tudo sobre o arranhão da perna do irmão, que choramingava no banho.
– Incrível – exclamou o irmão. Seus poderes são fantásticos. A dor já está passando. Veja aqui, titia, estava vermelho e já melhorou.
E assim seguiram os irmãos, um entrando na fantasia do outro, o curandeiro da floresta e o guerreiro das galáxias. Até serem atraídos para outra diversão e recarregarem o cérebro com mais estímulos para a vida que os convoca.
A minha, já bastante esfolada pelos percalços do caminho, também foi curada com o banho de inocência e de reinvenção da realidade que os dois meninos me deram.
Toda criança é um presente de Natal.
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