Márcia Lage
50emais
Era um garçom de praia, um desses jovens que correm de pé descalço entre uma mesa e outra do quiosque, atendendo à demanda por cerveja, água de coco, espetinho de camarões, pastel frito.
Beleza não tinha, mas portava uma simpatia radiosa, agregada à sua eficiência, agilidade e desapego competitivo. Qualquer um podia sentar nas cadeiras dele e pedir petiscos ou drinks nas barracas do entorno. Ele até buscava lá nos concorrentes.
– O mar é de todo mundo e é de graça. Assim como o sol, a brisa, a areia. Porque agir de maneira diferente? Por egoísmo, ganância, falta de visão comercial. Aqui nos complementamos. Se eu não tenho o que você quer e a barraca do lado tem, eu busco lá e vice-versa. Dessa forma, ganhamos todos e vivemos em paz, com amizade e respeito.
Gostava de conversar com os clientes. Se auto-denominava um milionário em progresso. Um ex-pobre que tinha aprendido a lidar com dinheiro seguindo palestras, cursos e aulas de investidores nas redes sociais. De conteúdo em conteúdo, foi pegando interesse por assuntos de maior relevância para a transformação social e econômica que queria imprimir à sua existência.
Estabeleceu a meta de guardar pelo menos 20 por cento do que ganha e, aos 22 anos, sonhar com uma vida digna a partir de agora. Havia perdido tempo. Trabalhava desde os oito anos de idade, ajudando a avó catadora. Mas não dava valor ao dinheiro.
Vendia o que conseguia diariamente e diariamente gastava o lucro obtido, confiante no garimpo do lixo que nunca acaba. Não sabiam – nem ele nem a avó – mensurar o tempo e o desgaste físico dispensados no trabalho. Cada dia pagava as necessidades e pronto. Não havia projeto de amanhã.
Quando a avó morreu, miserável, sem dentes e no mesmo barraco improvisado onde viviam na periferia da periferia, ele se tocou que haviam feito mal uso do esforço de viver. E comecou a tentar entender o mundo das finanças por meio da internet.
– Aprendi que qualquer um pode sair da miséria, se trabalhar com afinco, gastar com parcimônia, poupar com regularidade. Perto do que fui, sou um neo-rico. Posso até não ficar milionário, mas meu filho ficará, com certeza. Porque ele é meu melhor investimento.
– Você já é pai? Com 22 anos?
– Sim. Meu filhote tem quatro anos já. Eu e a mãe dele nos conhecemos na rua, nos juntamos e comecamos a construir um projeto a médio e longo prazo. Hoje, temos uma casa, um carrinho usado, uma moto e esse menino que a gente cria com o máximo de conforto que podemos oferecer.
O casal trabalha em jornadas diferentes, com o filho sendo cuidado por um dos dois, alternadamente. Aguardam uma vaga em creche de horário integral, para que ele receba educação formal e tome amor pelos estudos desde cedo.
– Eu e minha mulher só temos o ensino básico, mas nosso filho vai para a Faculdade. E até mais longe. Já estamos guardando dinheiro para a educação dele. Abrimos uma conta-poupança e depositamos 20 por cento dos nossos salários todo mês. É sagrado.
Em casa, o garoto é preparado para uma vida financeira próspera. Os dois inventaram uma espécie de banco familiar onde o valor do dinheiro é ensinado nas pequenas coisas. O garoto é recompensado pelo que faz de positivo e paga por tudo que deseja fora da rotina.
– Funciona assim: cada atividade que ele executa com disciplina e sem reclamar (tomar banho, comer verduras, fazer xixi no lugar certo, obedecer ao tempo de assistir desenho animado, ir para a cama no horário estabelecido, etc…) a gente dá a ele uma moeda, de qualquer valor.
Essas moedas vão para uma reserva de benefícios extras: guloseimas, brinquedos, iogurte a mais, diversão nos parques públicos. Os pais fingem que pagam com o dinheiro do cofrinho da criança, mas depositam tudo numa conta bancária para o futuro.
– Fazemos isso tudo com muito amor, muito diálogo, muito respeito pela infância dele. Não queremos que ele cresça desamparado, como nós. Mas também não queremos que ele ache que a vida é facil, que tudo vem de graça. Ele já entendeu o projeto e será um doutor, com certeza. É o nosso maior investimento. Nosso pequeno milionário em progresso.
Quem sou eu para julgar os métodos do ex-catador de rua para educar o filho e sonhar com mais prosperidade para sua familia.
Só posso desejar que seus esforços sejam recompensados e que eles desfrutem de conforto e paz. Um direito universal de todo ser humano.
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