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A arte de mentir

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/ O que vemos hoje na quantidade – e na qualidade – das mentiras que se contam no Brasil é que nem na ficção aquilo podia ser verdade. Foto: site Conti outra

Ingo Ostrovsky, 50emais

A verdade de hoje é que a mentira está na moda. Mentir atualmente é fashion. Os mentirosos ganham seguidores e nem precisa de prática ou habilidade, basta caprichar na mentira. O segmento de jornalismo que mais cresce nestes dias é o da checagem de fatos. Gasta-se tempo e energia para descobrir que pequenas verdades não passam de grandes mentiras.

Não é a primeira vez que escrevo sobre isso. Volto ao assunto mais por assombração do que por interesse. Sim, assombração, sabe como é? Aquilo que mete medo, que lembra “casa mal assombrada” e outras coisas dos filmes e contos de suspense. Foi-se o tempo em que mentir era o terror.

Mentir está longe de ser coisa nova. Mente-se desde a criação do mundo. Dei uma busca em algumas obras de referência e descobri coisas interessantes e atuais sobre a qualidade preferida das histórias da carochinha.

Winston Churchill liderou o Reino Unido durante a segunda Grande Guerra e foi muitas vezes obrigado a ocultar a verdade para proteger segredos militares. É dele a frase “em tempo de guerra, a verdade é tão preciosa que ela precisa ser guarnecida por uma escolta de mentiras”. Como corolário dessa frase atribui-se aos britânicos a tese de que uma mentira não viaja sozinha, precisa sempre da companhia de outras mentiras para ter pelo menos uma carinha de verdade. Muito antes de Churchill, o poeta George Herbert, nascido no País de Gales em 1593, havia escrito “ousa dizer a verdade: nunca vale a pena mentir. Um erro que precisa de uma mentira, acaba precisando de duas”.

Outro influente líder político, o alemão Otto von Bismarck, falecido aos 83 anos, em 1898, tinha uma visão quase irônica da mentira. Olha esta pérola: “nunca se mente tanto como em véspera de eleição, durante a guerra e depois da caça”. Nós brasileiros temos pouco conhecimento de guerra (nem temos equipamento para isso) mas sabemos mentir em eleições e adaptamos as mentiras da caça à pescaria… Mentira de pescador, entretanto, já foi mais valorizada, hoje tem que provar com selfie. Já as mentiras eleitorais seguem em alta, mais de 120 anos depois que Bismarck morreu.

Mais antigo ainda, o filósofo grego Aristóteles, que viveu cerca de 300 anos antes de Cristo, dizia que os mentirosos tem uma grande vantagem sobre os demais: “a de não serem acreditados quando dizem a verdade”. Já imaginou esse grego analisando certos depoimentos em CPI ou mesmo alguns discursos políticos atuais? O mentiroso de hoje é igualzinho a esse dos tempos antigos. Quando ele ensaia falar a verdade, ninguém acredita! Esse é um dos meus assombros: como é que um mentiroso pode se redimir? Pedindo desculpas? Dizendo “foi mal, chefia!” Tem jeito?

O espanhol Miguel de Cervantes Saavedra também se preocupou com a mentira muito antes de finalizar seu magistral Don Quixote de La Mancha em 1615, um ano antes de morrer. Foi na mesma linha de Aristóteles, e ainda deu um passo adiante: “assim como o mentiroso está condenado a não ser acreditado quando diz a verdade, é privilégio de quem goza de boa reputação ser acreditado mesmo quando mente”.

Muitos estudos já foram publicados sobre as “mentiras” que Cervantes conta em seu famoso romance, mas, alto lá: existe uma enorme distância entre a deslavada mentira e a ilusão que a literatura nos apresenta, como no caso do famoso cavaleiro andante espanhol. Cervantes, convenhamos, gozava de boa reputação. A gente lê Don Quixote e quase acredita que tudo aquilo realmente aconteceu.

O que vemos hoje na quantidade – e na qualidade – das mentiras que se contam no Brasil é que nem na ficção aquilo podia ser verdade.

Churchill, Bismarck, Aristóteles e Cervantes. Nenhum deles é brasileiro, nenhum deles escreveu em português sobre a mentira. Nenhum deles “normalizou” a mentira como a conhecemos hoje. Verdade é coisa cada vez mais inconveniente.

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