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Agora é lenda

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Charlie Watts, baterista dos Rolling Stones, morreu aos 80 anos. “Sua voz mais saía do instrumento, quase com a mesma elegância e, certamente, com a mesma sutileza como viveu”

Ingo Ostrovsky, 50emais

“I am not a rock star” (Não sou uma estrela do rock). (Charlie Watts – 1941/2021)

Quem diria que ouviríamos essa frase da boca de um membro dos Rolling Stones. Pois as palavras são do celebrado baterista da maior banda de rock and roll do planeta, uma das pedras rolantes que, tem quase 60 anos, sacodem gerações por onde passam e que morreu esta semana. Ficamos sabendo que ele foi casado 59 anos com a mesma mulher, bem diferente de seus colegas de estrelato. Houve destaque também para a elegância de seus ternos, sempre bem cortados por dois fiéis e afiados alfaiates.

Charlie Watts era chegado ao jazz. Usava muito aquela escovinha do baterista. Criou e manteve ativo um jeito mais leve – soft na linguagem atual – de bater rock and roll sem a força física do heavy metal, representado no Brasil por Igor Cavallera, um dos fundadores do Sepultura

Eu tinha 35 anos quando vi os Rolling Stones ao vivo pela primeira vez, em Londres, no velho estádio de Wembley, tocando Start Me Up. Watts já estava lá, discreto, deixando seus três escandalosos colegas – Mick, Keith e Ron – dominarem a cena. Charlie não corria pelo palco, quem se mexia eram suas mãos e suas baquetas. Esta semana, Paulo Braga, histórico baterista da musica popular brasileira, assim definiu a postura de Watts “você deu dignidade ao nosso instrumento”.

Brasileiro gosta de batucar. Quando criança, bate tambor. Depois agita uma caixinha de fósforos para acompanhar samba em botequim. Maiorzinho oscila entre pandeiro e tamborim. E antes da quarta-feira de Cinzas se acaba na bateria de uma escola de samba na avenida, tocando surdo, batendo repinique, agitando a caixa, sacudindo o chocalho ou marcando com o agogô. Bateria de escola, aliás, é o supra-sumo do ritimismo universal, até quem não é de samba – ou não é brasileiro – mexe as cadeiras.

E nem falei da cuíca, a brasileiríssima cuíca, que chora, ri, marca, dança e produz um som único no mundo! Fala verdade: tem igual?

Nossos barulhos são mais velhos que esse tal de roquenrol.

Pegue a batida da bossa nova, por exemplo, bem mais suave do que a dos sambas-enredo. Os americanos levaram décadas até entender como os brasileiros tiravam aquele som da bateria e, mesmo assim, nunca conseguiram fazer igual. Alguns dos grandes nomes do jazz americano importaram bateristas brasileiros para tocar os primeiros clássicos de Tom Jobim, Roberto Menescal e Carlos Lyra. Ninguém sabia bater a baqueta como aqui nos trópicos. Paulo Braga, citado ali em cima, era o preferido do maestro Tom Jobim e nos States tocou com Joe Henderson, Pat Metheny e Dave Sanborn, para citar somente alguns. Outro brasileiro, Airto Moreira, fez carreira internacional antes mesmo de ser reconhecido aqui no Brasil.

E o que dizer de Wilson das Neves, que nos deixou órfãos em 2017? Seu Wilson tocou com meio mundo, confessava que viajou tanto a trabalho que mal viu os filhos crescerem. Tocou de tudo, samba, bossa, jazz, mas sempre voltava para onde seu coração mandava, a quadra da Império Serrano. Lá foi velado. Durante anos tocou com Chico Buarque. Conseguiu ser ídolo da mais nova geração musical brasileira, gente como Emicida, por exemplo, baluarte do rap que mergulhou fundo nos sons de Das Neves até virar amigo e parceiro do setentão.

Por isso a quantidade de bateristas e ritmistas brasileiros que se manifestaram sobre a morte de Watts. Charles Gavin foi baterista dos Titãs, João Barone toca até hoje com os Paralamas. Os dois profissionais contaram histórias de deleite sobre a sobriedade e o imenso comando que o elegante e discreto Watts tinha sobre o rock dos Stones. Um dos meus bateristas preferidos, o carioca André Tandeta, foi econômico mas não menos entusiasmado: “Charlie Watts? impecável!”

Também com 80 anos, Chico Batera é da mesma geração de Watts, marcou a carreira de Milton Nascimento e segue ativo e influente. A Wikipedia me informa que Chico – também criado na Império Serrano – acompanhou Sérgio Mendes na primeira viagem aos Estados Unidos. Tem história.

Minha amiga Valéria Gauz, ritmista da escola de samba Estácio de Sá, onde encanta e toca agogô, viveu fora do Brasil e resumiu tudo chamando Watts de “Lorde” e emendando: “Sua voz mais saía do instrumento, quase com a mesma elegância e, certamente, com a mesma sutileza como viveu. Não à toa, adorava Charlie Parker. Agora é lenda. Eterno.”

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