50emais
Tudo no Calendário Pirelli 2024 é diferentes dos anteriores. A começar que essa é a edição de número 50 do mais famoso calendário internacional, lançado há exatas cinco décadas.
Todos os retratados em suas 12 páginas são figuras negras de destaque no mundo, como a própria modelo Naomi Campbell e a atriz Angela Bassett. E as imagens, feitas com grande esmero, são do jovem fotógrafo ganense Prince Gyasi.
O título do trabalho é Timeless – ou Atemporal. ““São pessoas que desafiam o tempo, é quase como se não existissem neste mundo. Eles nos mostram que não nascemos ‘atemporais’, mas nos tornamos”, afirma o fotógrafo.
Leia o ótimo artigo de Ubiratan Brasil para O Globo:
O fotógrafo ganês Prince Gyasi é o tipo de homem meticuloso. Aos 16 anos, tirou sua primeira foto profissional usando um iPhone já desgastado. Clicou amigos e familiares, depois modelos de sua cidade natal, Acra, até iniciar uma carreira meteórica colaborando com a grife Balmain e as revistas Vanity Fair e GQ, além de participar de prestigiadas coleções de arte e exposições. Agora, aos 28, apresentou seu mais recente trabalho, lançando sua carreira a outro patamar: as imagens do Calendário Pirelli 2024, que se tornou, com os anos, objeto de culto e peça de colecionador.
Não se trata de uma edição qualquer, mas a de número 50, o que convenceu a empresa italiana a apostar em novidades. Assim, Gyasi desponta como o mais jovem e o primeiro fotógrafo africano a conceber artisticamente o calendário. “Queríamos um artista ousado, e as imagens de cores fortes de Prince Gyasi nos impressionaram”, diz Marco Tronchetti Provera, CEO da Pirelli.
“Elas carregam uma importante mensagem social.” Com sessão de fotos na Inglaterra e em Gana, Gyasi reuniu um elenco totalmente negro, formado pelos atores Angela Bassett e Idris Elba, pela supermodelo Naomi Campbell, pelas escritoras Amanda Gorman e Margot Lee Shetterly, pela estrela pop nigeriana Tiwa Savage e pelo rei Otumfuo Osei Tutu II, entre outros.
Gyasi planejou meticulosamente cada uma das imagens, e sua estética apresenta uma realidade hipercolorida, refletindo experiências cotidianas. Ele considera seu trabalho uma “terapia por meio das cores”. “São pessoas que desafiam o tempo, é quase como se não existissem neste mundo. Eles nos mostram que não nascemos ‘atemporais’, mas nos tornamos”, afirma o fotógrafo. “Prince é poético ao definir cores brilhantes e de forte contraste, que resultam em uma explosão fotográfica de grande potência”, observa Amanda Gorman. Angela Bassett acredita que ele provoca vibração de mudança. “Isso ajuda a combater os estereótipos que rondam o imaginário a respeito da cultura africana”, completa a atriz.
O resultado são imagens marcadas por diversos elementos, desde um relógio derretendo na foto de Naomi Campbell até um coração vermelho gigante como cenário de fundo para a cantora Tiwa Savage. “Esses artistas são super-heróis para mim. Quis comunicar isso e fazer com que as pessoas criassem novas maneiras de admirar seus modelos”, conta Gyasi. “Meu trabalho foi unir todos os sentimentos que essas pessoas me provocam e transformá-los em arte.”
Como tudo começou
O Calendário Pirelli nasceu em meio ao turbilhão dos anos 1960, marcados principalmente pela revolução sexual. Nessa época, empresários britânicos, em busca de uma estratégia de marketing que ajudasse a companhia a se destacar entre os concorrentes, tiveram a ideia de criar um calendário, espécie de brinde corporativo. Um produto exclusivo, com conotações artísticas e que não deixaria de privilegiar as cobiçadas curvas de belas mulheres.
Robert Freeman, famoso por seus retratos dos Beatles, foi então convidado para criar o primeiro calendário, o de 1964, iniciando uma série cujos modelos eram, na maioria, jovens iniciantes, fotografados em ambientes externos, como praias exóticas e locais naturais. Ainda que o principal objetivo fosse reproduzir as sensuais folhinhas de borracharia, algumas edições conseguiram ser honrosas exceções — como a de 1968, na qual Harri Peccinotti se inspirou na poesia de Elizabeth Barrett Browning.
O calendário, porém, enfrentou uma breve pausa entre 1975 e 1983 em função da crise do petróleo, até estabelecer periodicidade e se tornar algo mais que uma luxuosa peça publicitária para a empresa italiana de pneus. O objeto reflete também os anseios da sociedade na época, especialmente quando o fotógrafo convidado busca algo maior do que simplesmente a nudez. Assim, o foco foi direcionado para questões como raça (a edição de 2018 teve um elenco totalmente negro) e gênero (a de 2019, inspirada no #MeToo, aspirava a retratar mulheres como sonhadoras e pensadoras).
Em 2015, a americana Annie Leibovitz, que se notabilizou como fotógrafa na revista Rolling Stone, escolheu mulheres que se destacavam em suas atividades. Assim, não causou estranheza quando, entre suas páginas, despontou Agnes Gund, presidente emérita do Museu de Arte Moderna de Nova York, ou mesmo a produtora de cinema Kathleen Kennedy, a tenista Serena Williams e a compositora Patti Smith.
Foi um passo decisivo na postura assumida pelo calendário, que se acostumara a ter emprestada a beleza de modelos como Naomi Campbell, Cindy Crawford, Kate Moss e Gisele Bündchen, e até de estrelas do cinema, como Nicole Kidman, Penélope Cruz, Sophia Loren e Jessica Chastain.
Um ano antes, Steven Meisel já levantara discussão sobre beleza ao escalar a modelo americana Candice Huffine que, na folhinha de 2015, precisamente no mês de abril, aparece ostentando uma bela peruca e seios generosos à mostra, em pose de pinup. Seu corpo vistoso destoava das demais 11 modelos, todas franzinas. Candice, então, ficou famosa justamente por ser uma modelo “plus size”.
A ditadura da beleza voltou a ser confrontada na edição 2017 do Calendário Pirelli pelo alemão Peter Lindbergh, que convenceu estrelas do cinema mundial (como Julianne Moore, Penélope Cruz e Nicole Kidman) a serem clicadas como se estivessem em um ambiente íntimo, sem maquiagem. “Não quero sua nudez física, mas a nudez de sua alma”, disse ele, para convencer a atriz Helen Mirren.
O Brasil inspirou um dos mais belos “The Cal”, o de 2013, clicado pelo americano Steve McCurry, fotojornalista de gestos discretos, fala mansa, sorriso tímido. Sua estatura levemente baixa contribuía para torná-lo quase imperceptível nas festas. Buscando nova vertente para um tradicional projeto, McCurry levou modelos (Isabelli Fontana) e artistas (Marisa Monte) para favelas cariocas, além do boêmio bairro da Lapa, onde a profusão de cores quentes serviu de cenário para retratos raramente vistos do bas-fond carioca.
“Busquei inseri-las em um ambiente que, ao contrário do que muita gente pensa, é acolhedor e extremamente fotogênico”, disse ele, cuja timidez se acentuou ao receber a diva Sophia Loren, que veio ao Rio especialmente para o lançamento do calendário. O que será que os próximos anos nos reservam?