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Numa de suas crônicas mais bonitas, a escritora Rachel de Queiroz, escreveu: “Netos são como heranças: você os ganha sem merecer. Sem ter feito nada para isso, de repente lhe caem do céu.” A autora do texto que você vai ler abaixo, jornalista Ruth Aquino, parece concordar plenamente com a afirmação, ao descrever como “uma novidade abençoada na minha vida,” o convívio com os dois netos. A força que une a avó aos pequenos é tamanha que fez com que ela modificasse a sua relação com o Natal e, pela primeira vez, montasse a sua própria árvore, cheia de bolas coloridas, com ajuda, claro, da menina e do menino.
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O Natal nunca foi minha festa favorita. Eu precisava ficar acordada até meia-noite no meio de muitos parentes que só se viam no dia 24 de dezembro, numa euforia estudada. O peru com farofa é um prato que até hoje eu passo. Frutas secas ou em calda também. Panetone idem, estou fora, não me apetecem nem os sofisticados. Rabanada, só as que minha mãe fazia em casa, as outras eram doces e secas demais.
O Papai Noel de shopping me amedrontava, as fotos me revelam desconfortável. Ganhava lembrancinhas que não serviam. A overdose de decoração doméstica me parecia cafona. O simbolismo religioso não me contagiava, eu já era avessa a missas na infância. O Natal era, portanto, uma data enjoativa e do Hemisfério Norte. Remetia a neve no ápice do verão.
Adulta, livrei-me do trauma e da obrigação. Livrei-me até do frisson natalino, das compras de dezembro, do trânsito insano de fim de ano. Passei a programar férias em Búzios a partir de 14 de dezembro. Fugia, com os dois filhos. Na frente do mar, pé na areia, alheia ao comércio, comendo na véspera risoto de polvo e cavaquinha grelhada, sem pinheiro artificial e sem presépios ou bolas coloridas.
Meus pais aderiam ao 24 de dezembro tropical e nos reuníamos na intimidade por um período de sol, areia e mar. Búzios no Natal era um paraíso. Vazio, tudo mais barato. Hoje mudou, está mais cheio, turistas descobriram isso aqui, mas continua bem mais calmo do que no réveillon. Meus pais já morreram e, na saudade grande, continuam dentro de mim. Mas tem uma novidade abençoada na minha vida há um tempo: os netos. Nina, 8, e Tom, quase 4.
Este ano, pela primeira vez montei uma árvore de Natal, junto com eles, saltitantes e jeitosos, mais do que eu. O pinheiro é natural, plantado na terra do vaso, continuo a implicar com os galhos, ramos e folhas artificiais. Trouxe do Rio umas bolas transparentes, recheadas de miniaturas de Papai Noel e casinhas com trenós e neve, e que acendem com pilhas. Fitas douradas, vermelhas, enfeites de pano de coração e estrela, sinos. Luzes azuis enfeitam a escada. Fiquei orgulhosa.
Meu filho primogênito, que completou 40 anos no fim de semana, olhou para mim incrédulo, com um meio sorriso irônico, quando me viu montando a árvore. A vó com o entusiasmo dos netos. O que aconteceu? Mudei? Ah, essas crianças que nos redefinem depois dos 60. Qual foi a mágica que fizeram em mim?
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Li no GLOBO sobre uma pesquisa que descobriu, nos Estados Unidos, algo que nós, avós, já sabíamos, já sentíamos. Nem precisávamos de comprovação científica. O estudo de um antropólogo provou que o amor por netos ativa o cérebro das avós de forma única. Reconheço que o avô pode também amar incondicionalmente – não todos. Mas as avós são um caso sério, à parte. Exames de ressonância magnética mostraram que as avós sentem o que os netos estão sentindo: alegria ou angústia. É a tal empatia emocional, que nada tem a ver com razão. A empatia que me toma inteira quando Nina dança jazz e Tom canta “eu quero partilhar, eu quero partilhar a vida boa com você”.
Essa conexão explica por que a magia natalina, depois de dois anos de muita dor e sofrimento, me contagiou agora. Meu filho mais novo, de 34, me disse: mãe, você pensa que foge da tradição, mas você criou sua própria tradição. Polvo e cavaquinha, horizonte e água salgada, champagne e sorvete. E agora, uma árvore de Natal bem bonita. Com netos que, como vocês avós bem sabem, são os mais encantadores, inteligentes e espertos do mundo.
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