Um texto simples e, em certa medida, tocante sobre como o tempo, à medida em que passa, vai desconstruindo, lenta e impiedosamente, todos nós. Ele é médico, tem um problema de saúde e vai se consultar. No consultório da médica que lhe foi recomendada, descobre que foi colega de sala dela no curso de medicina. E lembra que, quando jovens, tiveram um flerte. Ele fica mexido. A reação dela é diferente.
Leia o artigo de Mário Corso, publicado pelo jornal Zero Hora:
O nome da doutora fora bem recomendado. Era a especialista dos especialistas, médica que os colegas procuram em caso de desespero. Mais uma esperança de resolver suas excruciantes dores na coluna.
Quando chega ao consultório e vê os diplomas na sala de espera, o nome completo lhe ativa a memória. Seria a doutora Leila sua colega de escola? Nome igual, mas pode haver outras, já que o sobrenome não é incomum. A data de formatura informa que eles têm idade semelhante, portanto contemporâneos, logo poderia ser a Leila e não uma Leila qualquer.
Leila fora uma paixonite. Após uma reunião dançante no tempo do colégio, houve um amasso de que nunca esqueceu. Leila era uma das mais populares e, na ideia dele, a mais linda garota do Julinho, quiçá do mundo. Muitíssima areia para seu caminhãozinho, mas pelo menos uma vez ficaram. Guardou essa recordação como um dos momentos de glória entre suas parcas aventuras amorosas. Vivendo fora de Porto Alegre por décadas, nunca mais soube dela.
Abre-se a porta do consultório, ele a vê e pensa: não é a Leila. Aquela sílfide majestosa não poderia ter se transformado nessa senhora na qual mal se enxergam os contornos debaixo da roupa larga. Onde foram parar os encantos?
Veja também: O tempo acalma os sentidos, apara as arestas, coloca band-aid na dor
Porém os olhos eram da Leila. Aquele olhar lânguido que um dia recebera deixou uma foto em seu cérebro. Tinha que ser ela. Era outra, mas era ela. O tempo é cruel com as mulheres, diz para seu silêncio.
Não se conteve e perguntou, antes de falar do motivo da consulta: a doutora por acaso não estudou no Julinho na década de 1970?
Claro. Responde Leila abrindo um sorriso.
Por acaso você lembra de mim? Sou o Rodrigo.
Nem termina de falar e já se arrepende da pergunta. Se vê refletido no vidro do armário atrás dela. A careca brilhosa, os óculos pesados de míope, a barba branca, a roupa desalinhada de quem já abandonou a busca de olhares. Exigia demais da memória da doutora.
Leila o examina curiosa. Nota-se que procura no palácio da sua memória uma figura irrelevante. Mesmo assim ela tenta: dá uma pista, o senhor era professor de quê?
Leia também: O que fazer depois da aposentadoria, quando o tempo é todo nosso
Naquele dia, Rodrigo descobriu que o tempo não é só cruel com as mulheres. O tempo desmancha a todos. Temos espelhos em casa, mas mal percebemos o processo da escultura do tempo. Minúsculas diferenças lentamente nos transformam em caricaturas do que já fomos.
Ambos têm razão em pensar o outro como o mais caído. Nosso narcisismo nos presenteia com um photoshop interno. Não nos vemos como somos, nos damos um desconto generoso. Triste mesmo é que ele se lembrava daquele amasso e ela provavelmente não.
Veja também: O que você faria se descobrisse que tem pouco tempo de vida