Em 1864, quatro anos depois de ter prestado juramento solene como princesa imperial do Brasil perante as câmaras, no Rio de Janeiro, conforme previa a Constituição do Império, a herdeira do trono do Brasil, a princesa Isabel, então com 18 anos, se unia, meio a grandes festanças, ao príncipe francês Gastão de Orléans, o conde d’Eu, de 22. Apesar de ter sido um casamento arranjado por interesses políticos, como era comum entre a nobreza da época, os dois logo se apaixonaram. Pelo menos é o que garante a historiadora Mary del Priore.
Durante anos ela investigou a trajetória do casal, desde a dificuldade inicial que a princesa teve para engravidar até a participação do seu amado na Guerra do Paraguai, além de fatos marcantes da vida brasileira do período, como a abolição da escravidão – por ato da princesa – e a proclamação da República. O resultado é ‘O castelo de papel’, livro que acaba de ser lançado. A autora, especialista em história narrativa e autora de livros como ‘Carne e sangue’ e ‘O príncipe maldito’, deu esta entrevista ao jornalista e escritor Carlos Herculano, do Estado de Minas:
Por que você acha que o casamento do conde d’Eu com a princesa Isabel, arranjado, por conveniência política, acabou dando certo?
Foi um casamento aparentemente muito feliz. O casal se adorava e levava uma vida burguesa: “A cada dia agradeço a mais e mais a Deus tudo o que encontrei em meu casamento”, resumia Gastão. Enquanto o marido preparava sua partida para a Guerra do Paraguai, Isabel escreveu ao pai queixando-se do quanto custaria separar-se de seu “excelente e carinhoso Gastão”. Vestido de voluntário da pátria, parecia-lhe “encantador”. Por cartas, enviava-lhe violetas molhadas de lágrimas. Sem rodeios, dizia-lhe que sentia falta de suas carícias. Beijava-o de todo o coração. Quando Gastão foi instado por dom Pedro a substituir Caxias, Isabel sofreu mais ainda. Na noite de sábado, 20 de fevereiro de 1869, em que o marido recebeu a proposta do imperador para ir ao Paraguai, ela escreveu à mãe, reclamando. Quanto a dom Pedro, Isabel acusou-o de querer matar seu marido, pois Gastão estava debilitado e o médico recomendara que ele não pegasse nem chuva nem sereno. Os negócios da guerra cegavam o pai – dizia. Não queria Gastão fazendo o papel de “capitão do mato”, caçando López. E, ameaçava, iria segui-lo até o inferno!
Questões amorosas à parte, no livro percebe-se também que a princesa Isabel cresceu longe das questões políticas e parecia não se interessar por elas. Você acha que, se a República não tivesse sido proclamada e ela viesse a substituir o pai, teria condições de governar o Brasil?
Toda palavra repetida adquire o valor de uma advertência. Quantas vezes Isabel reiterou: quem lhe dera não participar de atos oficiais. Que seu pai viesse logo “arredá-la de suas responsabilidades”. Que não tinha ambição. Dom Pedro, por outro lado, tinha uma relação ambivalente com Gastão, a quem prejudicou em vários momentos, sobretudo durante a Guerra do Paraguai. Nunca fez o casal participar de questões políticas e os mantinha a uma boa distância das decisões ministeriais ou dos problemas que o país enfrentava. Várias cartas de Gastão ao seu pai, conde de Nemours, revelam o mutismo e o total alheamento em que dom Pedro os deixava. Isabel chegou a esfriar as relações com o genitor depois da morte de sua primeira filha, Luíza Vitória. Ela queria fazer o parto na Europa, onde se encontrava, e dom Pedro obrigou o casal a voltar ao Brasil. Um mau parto a fez perder a criança. No aniversário de morte de Luíza Vitória ele quis ir visitá-la. Ela escreveu a Gastão: “Longe de me distrair, isso só vai me incomodar. Por isso, tu podes dizer a ele que eu prefiro passar esses dias sozinha, com a minha tristeza. (…) eu lhe peço que, em todo caso, não venha a Petrópolis nesses dias”. Para não haver dúvidas, a princesa escreveu à mãe. Que não lhe aparecessem entre 26 e 28 de julho. Alguém teve que pagar pela morte da menina. Há vários episódios, bastante documentados por biógrafos e agora reforçados por minha pesquisa, em que se revela o pouco interesse de dom Pedro em preparar o casal para o Terceiro Império.
Falta de interesse do imperador em preparar a filha para governar, Guerra do Paraguai, libertação dos escravos. O que mais você acha que contribuiu para que o Terceiro Império não fosse instituído?
Inúmeros fatores. No livro, lembro que nos quartéis remexia-se a “questão militar”. Grupos manipulavam a candidatura do “novo Pedro”; o neto querido de dom Pedro e filho mais velho de Leopoldina. Vereadores gaúchos propuseram um plebiscito nacional para apurar a forma de governo que se desejava para o Brasil: império ou república? Não queriam uma sucessora “obcecada por educação jesuítica”. A proposta, aprovada por unanimidade no Rio Grande do Sul, contaminou São Paulo e a Corte. Temerosos que a princesa ganhasse a estima do povo, os radicais antimonárquicos começaram a se mexer. Diziam que ela só se interessava pela abolição para não perder a coroa. Apesar das centenas de cartas e telegramas de congratulações que receberam, ele sabia: crescia a pressão republicana. Aumentavam as propostas sobre um plebiscito sobre nova forma de governo. A abolição não diminuiu a antipatia à monarquia. O verdadeiro debate girava em torno da indenização aos proprietários de cativos. Até Gastão considerava que abolição sem ela era “passo precipitado”. Os republicanos moderados a reclamavam para não perder apoio dos fazendeiros. Isabel que não influiu na questão, tinha opinião: a medida não era conveniente nem justa, pois recairia, em forma de impostos, sobre quem não tinha nada a ver. E o país não possuía recursos. Seria uma solução ilusória.
O que mais contribuiu para que a manutenção do império se tornasse impossível?
Também foi época em que as mudanças estavam no ar. As chamadas “questões sociais” apaixonavam. Lia-se Proudhon, teórico do anarquismo, e alguns pioneiros já mencionavam “Carlos Marx”. A atividade dos moços girava em torno da abolição e da reforma política, pelo estabelecimento da República. Desprezavam o “Pedro Banana”. Desejavam fazer “tábua rasa das crenças avoengas”. Rui Barbosa, Olavo Bilac e Castro Alves eram considerados heróis. Louvavam-se os salvadores da pátria, egressos da Guerra do Paraguai, como Caxias, Osório e Floriano Peixoto. Cultuava-se a farda. Os jovens dividiam-se em “falanges”: a de Tobias Barreto, a de Rui, a de José Mariano. Muitos católicos diziam-se “tocados de influências positivistas”. Outros, anticlericais, proclamavam que “o Brasil só seria livre quando se enforcasse o último príncipe na tripa do último padre”. O espiritismo entrava na moda. Se a vida era eterna, por que os mortos não podiam se comunicar com os vivos? Feiticeiros africanos ou seus descendentes eram consultados por pessoas de sociedade. Colégios protestantes e missionários americanos disputavam clientela com os de religiosos franceses ou belgas. Até mesmo homens que conviviam com o imperador, como o visconde do Rio Branco, estavam “convencidos da aberração política e militar das velhas monarquias” – contou seu filho. A surpresa do triunfo foi tão grande para os revolucionários quanto para a Europa, que acompanhava a situação. O imperador, assim como os altos dignitários da monarquia, foi cúmplice inconsciente da derrocada. Isso, pois o edifício imperial foi mal construído. Era uma monarquia essencialmente burguesa, espécie de “planta exótica dos trópicos”.
Nem todo o mito que se tentou criar em torno de Isabel, depois de libertos os escravos, ajudou a manter a família imperial no poder?
Depois da abolição estabeleceu-se um consenso: a assinatura da Lei Áurea foi resultado da ação direta da princesa. O jornalista Viriato Correa, que, anos depois da proclamação da República, cunhou o termo isabelismo, explicava: não servia para endeusar a Redentora. Manipulado pelos republicanos, servia sim para enterrar a possibilidade de vê-la coroada. A abolição foi a pá de cal para enterrar a monarquia. A libertação dos escravos trouxe o apoio da “aristocracia territorial”, como então se chamavam os conservadores, ex-proprietários de escravos, à República. O movimento republicano, por seu lado, já tinha o apoio da mocidade das escolas, de parte da intelectualidade e da maioria das Forças Armadas devido à Questão Militar. Posteriormente, foi apropriado pelos monarquistas e os conservadores decepcionados com a República. Neste mesmo ano de 1889, as comemorações da abolição foram incrementadas. Bispos celebraram missas campais. Os Te Deums encheram os ares. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro cunhou uma medalha especial para oferecer ao imperador e sua filha. A tentativa era de imortalizar a data: “A história lhe reserva página honrosa”. Mas as homenagens à “ínclita princesa”, seu pai e marido, “promotor da abolição no Paraguai”, não foram suficientes para garantir longevidade à Coroa brasileira. Povo e políticos pagaram seu gesto não com reconhecimento. Mas com o que a família imperial entendeu como ingratidão. De nada adiantou o esforço para identificar a causa abolicionista com o Terceiro Reinado, e a República acabou sendo proclamada. No que tange à princesa Isabel e ao conde d’Eu, creio que eles, dentro do mundo que conseguiram criar ao seu redor, foram felizes, mesmo durante o exílio.