50emais
A história é bonita demais para não ser compartilhada: uma rica fazendeira, Gislaine Rosa, com propriedades em Minas Gerais e em Goiás, doou o equivalente a 40 milhões de reais em terras e dinheiro para um fundo investir em um projeto de caráter social e ambiental.
O objetivo da parceria é transformar a Fazenda Pinheiros, um conjunto de propriedades somando 1.500 hectares no entorno do município de Campo Belo, no sul de Minas Gerais, em um modelo sócio-ambiental de produção agrícola: adotando o sistema agroflorestal de cultivo, com agricultores familiares trabalhando coletivamente.
“Sempre tive vontade de compartilhar, de dividir. Estou muito emocionada, com uma alegria e uma paz imensa de saber que a plantação vai ser orgânica, que as águas serão preservadas, que vai ter escola para as crianças, quem sabe um posto de saúde, uma capelinha,” disse a fazendeira.
Leia a história completa escrita por Mariana Barbosa para O Globo:
A mineira Gislaine Rosa vinha há um ano tentando contatar João Paulo Pacífico, CEO do Grupo Gaia, sem sucesso. Fazendeira com propriedades no Sul de Minas e em Goiás, ela tinha gostado de um post de João Paulo sobre agricultura sustentável e tinha algumas ideias para trocar, mas seus acenos invariavelmente se perdiam nas caixas de mensagens das redes sociais.
João Paulo é uma espécie de infiltrado na Faria Lima. Um gestor ativista bastante ativo nas redes. Tem 219 mil seguidores no Instagram, onde costuma atacar a ganância das grandes corporações e fazer a defesa de uma sociedade mais justa e sustentável. Ele tem uma securitizadora focada em investimentos de impacto e já levantou mais de R$ 20 milhões para financiar a produção de alimentos sem agrotóxicos do Movimento Sem Terra (MST).
Gisa, como gosta de ser chamada, estava quase desistindo:
— Estava achando ele muito estrela. Aí uma amiga foi a um congresso onde o João estava e conseguiu o celular dele.
Era sua última cartada e ela resolveu caprichar na mensagem:
“João, eu tenho uma área de 1.500 hectares. Gostaria que a Gaia ou você fossem meus “herdeiros”, meus parceiros para transformar a fazenda. Ou sua orientação, como posso fazer uma parceria. Podemos inclusive trazer agricultores para fazermos uma fazenda modelo sócio-econômico com eles.”
Isso foi em 12 de julho. Três dias depois, João e Gisa se encontravam em São Paulo para traçar os planos de transformar a Fazenda Pinheiros, um conjunto de propriedades somando 1.500 hectares no entorno do município de Campo Belo, no sul de Minas Gerais, em um modelo sócio-ambiental de produção agrícola: adotando o sistema agroflorestal de cultivo, com agricultores familiares trabalhando coletivamente. Na propriedade, que remonta ao avô de Gisa, hoje planta-se soja e milho e cria-se gado.
A Fazenda Pinheiros e mais uma doação em dinheiro somam um patrimônio de cerca de R$ 40 milhões que agora pertencem ao Fundo Patrimonial Joaquim Rosa Cambraia. O fundo que leva o nome do pai de Gisa será gerido pela Gaia Legado, gestora de fundos patrimoniais de impacto do Grupo Gaia.
— O fundo patrimonial vai garantir a perenidade do propósito, para que daqui a 200 anos essas terras estejam produzindo alimentos, sem veneno e sem especulação imobiliária — diz João Paulo, que contou com a assessoria da advogada especialista em terceiro setor, Priscila Pasqualin, para estruturar o fundo.
Leia também: Defensora ferrenha do meio-ambiente, jornalista é uma das maiores do Brasil
Gisa é quase uma fazendeira acidental. Ela queria mesmo ser jornalista. Saiu de Campo Belo e foi para o Rio, onde cursou Jornalismo e Direito. Chegou a fazer estágio nas rádios Globo e JB FM. Mas a carreira foi abreviada por uma notícia trágica: a morte precoce do seu pai, aos 52 anos. Era 1990, ela tinha 27 anos e voltou para a terra natal para cuidar dos negócios da família. O irmão Carlos Alberto, o Beto, ficou administrando as fazendas. Coube a Gisa pilotar a concessionária da família.
— Meu pai não me queria de jeito nenhum no meio de peão — diz Gisa com seu sotaque mineiro.
Ela relembra o furor quando souberam que a concessionária seria comandada por uma mulher:
— Vieram me falar que já tinham arrumado um comprador. Respondi que só debaixo do meu cadáver.
A concessionária, que vendia “meia dúzia de carros”, hoje tem 10 mil m², 70 funcionários e uma filial.
Uma outra notícia triste, porém, acabou levando Gisa a se meter no meio dos peões. A morte da mãe, Amah, em 2006. Pouco depois, seu irmão teve um AVC. Quando os dois irmãos fizeram a partilha, em 2017, Gisa ficou com a Fazenda Pinheiros e mais duas propriedades em Goiás, além da concessionária.
Foi quando ela começou a fazer intervenções pontuais na fazenda: se voltou para a “produção de água”, recuperando 64 nascentes.
— Eles criavam porco solto e isso acaba com as nascentes — diz ela, que também reservou uma lavoura para o cultivo de cafés especiais, com colheita manual feita por mulheres, sob a marca Café da Bananeira.
Gisa contratou professores para alfabetizar quem ainda não era letrado e dar curso de inglês para as novas gerações.
— Meu sonho era ter uma fazenda modelo de sustentabilidade, com escola técnica para os funcionários. Foi aí que comecei a procurar o João — diz Gisa.
Ela não teve filhos. O irmão faleceu ano passado.
— Sempre tive vontade de compartilhar, de dividir. Estou muito emocionada, com uma alegria e uma paz imensa de saber que a plantação vai ser orgânica, que as águas serão preservadas, que vai ter escola para as crianças, quem sabe um posto de saúde, uma capelinha — disse Gisa, que recebeu a coluna com um sorriso largo e um docinho de leite em seu quarto no Hospital Sírio Libanês, em São Paulo, na última terça-feira, dia 22.
Há poucas semanas, Gisa recebeu uma outra notícia que tornou tudo mais urgente: um diagnóstico de câncer.
— Guimarães Rosa dizia que o que a vida quer da gente é coragem. Ainda bem que tive essa coragem de ir atrás do João e não desistir. Sozinha eu não saberia por onde começar.
Pergunto se tem algum arrependimento: — Nenhum, sou muito grata por tudo. Arrependo de não ter feito isso mais cedo. Mas já está sendo feito. Não vou arrepender mais.
As outras propriedades Gisa pretende vender, doando o dinheiro para hospitais beneficentes.
Plantio coletivo
O projeto da Fazenda Pinheiros deve se chamar ”Nova Era de Gaia” e abrigar 120 famílias de agricultores, em um modelo cooperativo, com plantio coletivo. Serão priorizadas para receber moradia, com direito de permanecer para sempre nas terras, famílias de agricultores da região.
Leia também: Vendo as deficiências do setor, médica cria rede de casas de repouso
A fazenda vai passar por um reflorestamento e a implantação do sistema agroflorestal — em que as culturas agrícolas são plantadas em meio a árvores — vai contar com a assessoria técnica do Movimento Sem Terra (MST), que também deverá auxiliar na comercialização da produção.
— Essa é uma reforma agrária do terceiro setor. Um modelo inédito no Brasil e talvez no mundo, por usar um Fundo Patrimonial — ressalta João, já respondento aos confrontantes (vizinhos das fazendas) que, com as primeiras notícias sobre a doação, passaram a temer uma “invasão de sem terras”.
— Estamos criando um novo modelo economicamente viável de regeneração de fazendas, com produção de alimentos, com gente morando lá dentro. É uma solução ambiental, econômica, social e alimentar. Queremos criar um modelo que possa ser replicável, inspirando outras pessoas a fazerem doações de terras para serem regeneradas — completa, João.
A escola da fazenda já tem nome: Padre Justino, um padre holandês conhecido por ter feito o primeiro assentamento no Brasil, muito antes do nascimento do MST nos anos 80. Justino era professor, amigo do pai de Gisa e frequentava a fazenda.
— Meu pai cedeu umas terras para o Padre Justino plantar arroz há 45 anos. O padre era um visionário — lembra Gisa.
Só agora, em meio às reuniões para o desenvolvimento da “Nova Era de Gaia”, ela descobriu que o padre Justino da sua infância é um ícone celebrado pelos trabalhadores rurais.
Leia também: Quando o tempo que está pela frente fica menor do que o que já passou