Maizé Trindade, 50emais
Toda semana três garis varrem minha rua. Manhã dessas, quando saía pra caminhar, parei para oferecer-lhes café e conversar com eles. Todos moram na periferia de Belo Horizonte e compartilham rotina de trabalho dura. Acordam às quatro da manhã para pegar serviço às sete, enfrentam duas horas de trânsito difícil, comem marmita fria, trabalham sob sol ou chuva.
L. tem três filhos e apenas 27 anos. T. é solteiro e ajuda a mãe a pagar o aluguel. C. já foi casada duas vezes, tem dois filhos, mas agora está novamente sem companheiro. Desde aquela manhã, passei a chamar os garis da minha rua pelo nome e a me interessar pelo cotidiano deles. Conhecer detalhes da vida daquelas pessoas me aproximou delas.
Quando tentei ler Marx (1818-1883), pela primeira vez, desisti. Como sou teimosa, continuei persistindo. Marx não é leitura fácil. Sua obra mais conhecida — O Capital — considerada uma das mais importantes da filosofia moderna e contemporânea, exige esforço e determinação. Ideal pra gente teimosa, como eu.
Mas alguém que, há dois séculos, ousou denunciar as condições exploradoras do trabalho humano e iluminar os caminhos para as ciências que tinham no homem e nas suas relações sociais o seu objeto de estudo, merece todo meu esforço e consideração.
Hoje reli o despretensioso livro de Peter Stallybrass, intitulado O Casaco de Marx: roupas, memória e dor. Embora já conhecesse a atribulada vida do filósofo alemão, suas perdas e tragédias, o texto sempre me comove ao relatar detalhes de como seu casaco entrava e saía da loja de penhores para sustentar necessidades básicas da família. No verão, quando precisava de dinheiro, Marx empenhava o casaco. No inverno, tentava recuperá-lo para se proteger ou “se vestir de forma respeitável para frequentar a biblioteca do Museu Britânico”, onde conduzia suas pesquisas para escrever.
Stallybrass consegue transportar Marx pro seu tempo, na miserável casa de Dean Street, no bairro do Soho, no centro de Londres. Descobrir que o mesmo homem que construiu a teoria sobre o materialismo histórico, precisasse penhorar seu casaco para sobreviver, me emociona.
Se a leitura do autor de “O Capital” exigiu de mim certo distanciamento e reverência, conhecer detalhes dos seus sacrifícios pessoais me aproximou e me levou a ter “forte apreço pelo profundo e poderoso compromisso de Marx com os seus ideais, apesar dos muitos sacrifícios pessoais que teve que fazer”.
Mais ou menos como aconteceu na minha relação com os garis da minha rua. Nestes tempos de virtualidade e impessoalidade, o que precisamos é de uma boa dose de humanidade. Direto. Na veia.
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