Márcia Lage
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Topei com o corpo da Florzinha debaixo do portal que divide a parte social e a íntima da casa de minha mãe, no interior de Minas. Com certeza procurava meu quarto, onde dormia aos pés da cama, de vigília, quando não estava em presença da sua verdadeira dona.
Essa ficara em Belo Horizonte, para preparar o pequeno apartamento para receber os netos, enquanto a cachorrinha passaria o Natal e o 84° aniversário da matriarca com a primeira geração da família. Foi uma viagem tranquila, de quatro horas, e Florzinha veio dormindo no banco de trás. Quando chegamos fez todas as necessidades represadas durante o trajeto, comeu, tomou muita água e foi explorar a casa e o quintal.
Conhecia o espaço interno, a horta e o jardim, onde brincava sempre que vinha, nos treze anos que viveu entre nós. Latiu e disputou espaço com a outra cachorrinha da casa, da mesma ninhada de mini-poodle que gerou filhotes adotados por outros irmãos, em tempos e cidades diferentes. Filhos, netos e cachorros se encontram regularmente nas festas de fim de ano. Se reconhecem, se divertem, se cheiram e se separam, até o próximo Natal.
As pequenas cadelinhas brancas são inteligentes, dóceis, leais. Florzinha era minha favorita. Fazia festa quando eu chegava. Vinha com um brinquedo na boca, me desafiando a pegá-lo. Quando eu conseguia, lançava o brinquedo longe e tudo recomeçava, até que cansávamos. Então ela se deitava aos meus pés, com a barriga para cima, pedindo afagos.
Eu era certeza de descida ao parquinho, de uma volta no quarteirão, de um passeio até ao supermercado ou à farmácia, onde ela me aguardava na porta, educada e confiante. Mas, se minha irmã estava em casa, ela não descia do prédio comigo. Tínhamos que levá-la até ao elevador e só eu entrava. Ela logo pedia para voltar, guardiã que era da segurança da dona.
No dia da viagem ela não opôs resistência. Deixou-se pegar e entrou no carro com a alegria que tinha de viajar. À noite ficou inquieta porque demorei a me recolher, e quando enfim o fiz, sossegou em seu zelo e dormiu imediatamente, no chão, bem próxima de mim.
Na madrugada levantei para ir ao banheiro e ela foi atrás. Na volta, parou no meio da sala e não me seguiu. Deixei a porta aberta, acreditando que ela queria dar uma volta no quintal e logo retornaria. Às seis e meia da manhã a encontramos dormindo bonitinha, estirada na sala. Mas não reagiu à nossa presença. Calculei que parou de respirar enquanto voltava ao seu posto de vigília, fulminada por um infarto.
Foi triste dar a notícia à minha irmã. Ela chorou. Um cãozinho é companhia que movimenta sentimentos muito profundos de carinho, companhia, segurança, gratidão. Aquela Florzinha, especialmente, viera preencher um vazio deixado pela morte do filho mais velho e a mudança dos outros dois. Uma vive tão longe, num país tão fechado pela pandemia, que ela ainda não conhece um dos netos.
E eu tive que anunciar a morte da cachorrinha, cavar novo buraco no coração da minha irmã e outro no quintal da minha mãe, onde deitei a Flor sob os olhares incrédulos da família. Minha mãe não tira os olhos do túmulo. Balança a cabeça: “Coitada da Florzinha, veio morrer na casa da vovó”.
– Foi uma morte muito feliz, eu a consolo. Sem dor, sem doença, sem sobressaltos. Seria bom se morrêssemos assim.
No fundo, é isso que nos assusta. Uma cachorrinha amada morreu sozinha enquanto dormíamos. Poderia ter acontecido com qualquer um de nós.
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