Márcia Lage
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As duas se olharam como se mirassem um poço de águas turvas, que refletiam a imagem distorcida do que elas imaginavam ser. Se estranharam na velhice de cada uma.
A que vai fazer 90 anos em Março – no dia internacional da mulher, como faz questão de frisar – já estava quase cega, perdera o seio direito para um câncer, que finalmente se deu por vencido e, no mais, tudo bem. Mantinha o bom humor e a alegria de sempre, ria de si mesma e dos outros, pronta para viver ou morrer. Deus decidisse e ela acataria, fiel que é à religião.
A segunda, que completava 84 anos, achou a prima que veio para a festa “um caco”. Ficou chocada com a dependência que a falta de visão provocava. E nervosa ao vê-la andar apalpando móveis e paredes. “Deus me livre de ficar assim ” – exclamava quando a outra não estava por perto. Essa se compadecia do silêncio da mais nova, do andar duro e da preguiça de sair de casa, mesmo que fosse para dar uma voltinha no quarteirão.
– Eu vim aqui para animá-la, para lembrarmos dos tempos antigos e conversar muito. Mas ela está surda feito uma porta e não se interessa por nada. Eu, pelo menos, não perdi o gosto de viver. E confesso que até hoje, se aparecesse um homem, eu não recusava. Meus filhos precisam de um pai”, completava irônica.
Perdeu o marido aos 40 anos. Criou sozinha sete filhos, na máquina de costura e na cozinha. Nunca mais fez sexo. Mas lamenta “o prejuízo”. Por que não casou de novo? “Porque ninguém quer uma viúva com uma reca de menino catarrento, não é?”
– A prima conversa fiado demais – queixava-se a mais nova. Uma latomia na minha cabeça, estou doida que ela vai embora. Só falta ela morrer aqui, está velha demais para viajar. Eu, no lugar dela, ficava quietinha em casa, não saia para nada. Corre muito perigo com essa cegueira!
Aos 84 anos e viúva desde os 60, a mais nova já entregou os pontos, não nega. Só sai de casa aos domingos de manhã, para ir à missa. De carro, com a nora, que a leva e traz. Não faz mais nada. De vez em quando pica uma couve. Ou lava louça do almoço, se ninguém – inclusive a cega – não tomar a frente na tarefa.
A que vai fazer 90 anos tem planos de dar uma festa e chamar um grupo de forró pra dançar até ficar com as pernas bambas. A que fez 84 fechou a cara na hora dos parabéns e não achou graça alguma no empenho dos filhos em celebrar a data. Há dias que fica feliz, outros em que se tranca num mutismo sem explicação. Dorme o mais que pode. Por ela, nem levantava da cama. “A gente, depois de velho, é mandado por todo mundo”, queixa-se, obediente e conformada.
Não toca no assunto morte, como a outra. “Para mim, tanto faz viver ou morrer. Mas, enquanto a morte não vem, não vou ficar nessa pasmaceira da minha prima não. Ela está desanimada demais, será depressão? Tem que reagir, mas eu me dou por vencida. Vim aqui para alegrá–la, mas não consegui”.
Alegre a mais nova ficou quando a prima foi embora finalmente. “Ô delícia ficar sozinha. Detesto falatório na minha cabeça e gente me obrigando a fazer o que eu não quero”.
No dia seguinte a outra ligou pra informar que fizera uma boa viagem. Não rendeu assunto. Estava só, na escuridão da cegueira. A outra ouvia mal com a microfonia da surdez. A conversa deu apenas para se recomporem do susto de se verem velhas e decrépitas no olhar da outra, no espelho alheio que reflete, com mais nitidez, a imagem do que nos tornamos após cada vela soprada nos bolos de aniversário.
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