Márcia Lage
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Quando ouço as barbaridades cometidas pela Prevent Sênior contra seus clientes, assassinados (a palavra é esta, não tenhamos pudor) em experimentos nada científicos sobre tratamento da Covid-19, reforço em mim uma convicção sobre saúde: não é mercadoria, nos pertence e não podemos terceirizar cuidados preventivos. Não quero dizer, com isso, que não devemos ir a médicos, mas plano de saúde (na verdade, de doença, porque você aposta no pior) é um tipo de investimento que considero desnecessário, se não temos nenhuma cormobidade pregressa, para usar o termo da moda.
Quando estava na ativa tinha esses tais planos, pagos em parceria com as empresas nas quais trabalhava. Quase não usava, porque tenho um médico homeopata de extrema confiança que me acompanha desde que eu tinha 21 anos, e que me ensinou a ouvir o corpo, detectar sintomas, associá-los a algum estresse emocional ou físico, um cara ético, não mercantilista. Uma consulta com ele dura duas horas, numa profunda investigação das causas das queixas dos pacientes.
Toda vez que recorri a um especialista do plano comparei os atendimentos. Enquanto um me ouvia e me restabelecia o equilíbrio físico e emocional com um único medicamento, os demais pediam muitos exames, sem nem olhar na minha cara, para depois me intoxicar com antibióticos e anti-inflamatórios de última geração (os mais caros) e me amedrontar com futuros tenebrosos.
Não estou pregando a homeopatia como alternativa para todos os males (nem mesmo os homeopatas o fazem) mas quem conhece as duas propostas de atendimento sabe que a primeira vê o doente e que a segunda enxerga a doença. As abordagens são diferentes e não há, na primeira, uma indústria farmacêutica por trás querendo obter lucro à custa de vidas alheias. Por isso, ao me aposentar, fiz um balanço das minhas consultas e exames mais frequentes e conclui que com uma única mensalidade de um Prevent Sênior, por exemplo, eu faria um check-up anual pagando tudo no particular.
Alterno entre meus médicos de confiança e o SUS. Não existe lugar com mais intenção de fazer o melhor pelo ser humano que este nosso maravilhoso sistema de saúde, que deve ser usado por todos, para que nunca seja desmantelado. Hoje mesmo passou pela nossa casa uma agente do PSF (Programa Saúde da Família) para perguntar sobre os moradores da casa, ver se tem algum acamado e garantir que, se minha mãe, que já está velhinha, precisar de enfermeira, uma será deslocada para atendê-la. Minha avó, em Brasília, ficou três anos acamada e teve toda atenção do PSF, desde fraldas até alimento. Por isso acredito, confio e agradeço.
Quando digo que não tenho plano de saúde vem logo a pergunta: e se você precisar de um tratamento urgente? Vai morrer esperando! – Vou não, respondo. Já estou lá dentro, não se deve fazer com o SUS o que a classe média fez com as escolas públicas. Ele é público do princípio ao fim. Na hora dos acidentes, é para os Pronto Socorros Públicos que o SAMU encaminha todo mundo. E nas recuperações difíceis, para a Rede Sarah, onde políticos vivem dando carteirada para furar a fila de seus protegidos.
Além de ter custo alto e pouca garantia de bom atendimento, os planos de saúde privados ainda causam hipocondria. Para compensar o investimento, vamos a médicos por qualquer enxaqueca, deixamos de nos observar, de conhecer o funcionamento do nosso corpo e da nossa mente. Tomamos remédios em demasia, fazemos exames perigosos, sofremos efeitos colaterais, misturamos drogas com álcool, corremos risco de virar cobaias, como os pacientes do hospital do Prevent Sênior, que nem sequer foram consultados sobre o tratamento experimental contra o coronavirus.
Quem pode pagar por planos privados e hospitais de luxo que o faça. Para mim, nenhum hospital é lugar de estar, e se puder morrer sem entrar neles, tanto melhor. Antes disso, porém, é necessário desmistificar essa ideia de que o privado é bom e o público ruim, porque não é. A coisa pública é gerida e fiscalizada por um sistema que dificilmente permite pesquisas não científicas como as que a rede Sênior está sendo acusada de promover. O que existe por trás dessa desconstrução dos sistemas públicos de saúde, aqui e em muitos países, é uma máfia de branco sem ética; governos neoliberais na defesa de um Estado zero (leia-se desumano e segregador) e empresários interessados em lucros e não em vidas (os hospitais privados do Brasil tiveram os maiores ganhos de capital durante a pandemia e o aumento exponencial de farmácias comprovam que o segmento é muito lucrativo).
Defendo o consumo consciente em todas as atividades, e para deixarmos de ser cobaias é preciso inverter a lógica dessa indústria da doença. Uma vida saudável não é uma corrida insana a médicos e hospitais, mas um passeio suave pela boa mesa, pelas boas práticas de exercícios físicos, pela aposta em atividades que fazem bem ao corpo e à mente: amigos, leituras, viagens, família, amor, abraço, solidariedade, natureza, descanso, pausas, reflexões, terapias, autoconhecimento.
Pagar para ter tudo isso custa menos que terceirizar a saúde e depositá-la, sem garantia de retorno, nas mãos de inescrupulosos. Como tudo que compramos, saibamos, também na área da saúde, escolher o melhor e boicotar o que não presta. Este é o nosso poder de consumidor.
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