Márcia Lage
50emais
O ônibus inteiro queria dormir. O urso não deixava. Relaxado, como numa caverna, na poltrona do corredor, roncava em hibernação.
De tempos em tempos interrompia o ritmo do fole de sua garganta e emitia grunhidos aterradores, como se ameaçado por lobos ou leões.
Depois de fazer saltar de susto os passageiros entorpecidos de sono, voltava a dormir candidamente, feito gato ronronando. Só que dentro de uma caixa de som ligada no volume máximo.
A moça que estava na poltrona da janela lhe dava uns cutucões de vez em quando, esmagada pelo seu corpanzil.
Uma hora não deu conta. Saltou o urso, que dormindo estava, dormindo ficou, e veio sentar-se na poltrona junto da minha, abandonada em desespero pelo passageiro que a ocupava minutos antes.
Ele viu uma vaga lá na frente e debandou-se, alegando que precisava dormir, pois iria direto para o trabalho assim que chegasse ao Rio.
Era o caso também da moça agora ao meu lado. Ela já conhecia o urso das viagens frequentes que fazem no trecho Rio-BH.
Passam os fins de semana em Minas e voltam para trabalhar nos dias úteis. Um bando de passageiros acostumado a se ver. Todos revoltados com o abusado roncador.
Impedidas de dormir, entabulamos conversa sobre direitos. Até onde uma pessoa que ronca feito um animal pode não se preocupar com os outros?
Quem deve se proteger contra o ruído ensurdecedor e as paradas respiratórias assustadoras do indivíduo que ronca? Ele ou os outros?
A moça era da opinião que quem ronca tem todo o direito de viajar. Mas que deve evitar incomodar os demais passageiros, usando os diversos aparelhos e apetrechos que existem no mercado para conter o ruído.
– Li que o ronco está relacionado ä idade, ao sobrepeso, à ingestão de álcool antes de dormir e a problemas físicos, como desvio do septo nasal, sinusite, rinite, amigdalite. Ou seja: há como evitar.
O problema é que muitos dos que roncam não se dão conta do dano que causam a si mesmos e aos outros.
Imagina se esse homem é casado. A mulher dele também sofre de privação do sono.
Por que a sociedade é tão tolerante com esse tipo de transtorno?
Enquanto falávamos, já com os olhos pesados de sono, sugeri à moça que usasse protetores auriculares quando fosse viajar à noite.
Assim se livraria dos roncadores e, de quebra, dos mal educados que ouvem mensagens de voz, videos e música nos celulares a todo volume, ignorando a existência dos fones de ouvido.
Nisso, o urso estrebuchou, urrou feito jumento e deu um susto tão grande na gente que peguei minha garrafa de água e lancei um esguicho para trás.
O homem acordou, se endireitou na poltrona e, milagrosamente, não roncou mais. A moça me perguntou alivida: Era água benta o que você jogou nele? Parece que você exorcizou um demônio!
Dormimos na paz do Senhor até chegar ao Rio. Espero que o homem exorcizado tenha procurado um médico.
Uma pessoa privada do sono pode ter reações mais perigosas do que apenas jogar água na cara de quem ronca.
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