Tive o privilégio de conhecer Sueli Carneiro numa reunião, no Rio de Janeiro, da Anistia Internacional, organização de defesa dos direitos humanos à qual eu e ela estamos ligadas. Antes, já havia lido alguns de seus excelentes artigos e visto seu belíssimo depoimento no documentário “A Última Abolição,” lançado no final de 2018, dirigido por Alice Gomes, sobre a tragédia da escravidão no Brasil e a caminhada dos negros no pós-abolição, em maio de 1888. Sueli Carneiro é uma dessas combatentes aguerridas, incansáveis, da causa negra. E, hoje, um de seus expoentes. Ela acaba de completar 70 anos de vida. Por isso, mereceu este artigo de Flávia de Oliveira, em O Globo.
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Sueli Carneiro fez 70 anos. Nasceu num 24 de junho, dia de São João, data festiva Brasil afora. E o país precisa conhecer e celebrar a existência dessa filósofa, escritora, ativista, referência maiúscula do movimento de mulheres negras. Desenganada aos 2 anos de idade pela desnutrição severa decorrente do Mal de Simioto (doença de crianças pequenas alérgicas ou incapazes de digerir o leite de vaca), Aparecida Sueli Carneiro Jacoel completa sete décadas de vida em intensa atividade, reconhecida e reverenciada por seus pares. É um marco numa sociedade atravessada pela existência abreviada de pensadoras negras, como Beatriz Nascimento, morta aos 52 anos, Lélia Gonzalez (59), Carolina Maria de Jesus (62) e Luiza Bairros (63).
Nas palavras precisas de Bianca Santana, jornalista e biógrafa da pensadora, Sueli Carneiro é a mulher que enegreceu o feminismo brasileiro. Não é exagero. Em abril de 1988, ela fundou a Geledés – Instituto da Mulher Negra, organização da sociedade civil pioneira em denunciar e combater, com protagonismo feminino, o racismo, o machismo e a desigualdade nacionais. Fez isso, antes de os negros marcharem contra a abolição incompleta naquele maio do centenário da Lei Áurea; de a Constituição Cidadã ser promulgada, em outubro; de o primeiro presidente eleito diretamente após duas décadas de ditadura militar ser escolhido e empossado.
Sueli Carneiro, mãe de Luanda, corintiana apaixonada, fã de futebol, é autora de centenas de ensaios, textos acadêmicos, artigos de jornais e discursos, porque ela não fala de improviso. Elenca cuidadosamente dados, argumentos, raciocínios para cada apresentação oral. Dia desses, assim definiu-se: “Escrevo para falar”. O primeiro livro foi publicado em 1985, em coautoria com Thereza Santos e Albertina de Oliveira Costa. “Mulher negra: política governamental e a mulher” analisou de modo inédito, segundo a biógrafa Bianca, gênero, classe e raça — variáveis do feminismo interseccional que ganhou musculatura no Brasil do século XXI pela obra de intelectuais negras como Djamila Ribeiro, Carla Akotirene, Joice Berth, Juliana Borges, Giovana Xavier e Winnie Bueno, para ficar em meia dúzia de exemplos.
Em 2018, a filósofa Djamila, coordenadora da coleção Feminismos Plurais, lançou o selo editorial Sueli Carneiro. A estreia foi com “Escritos de uma vida”, seleção de 20 textos da homenageada, doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). O livro dá a medida da importância de Sueli para o movimento negro e o feminismo brasileiro. Filha de Ogum, escreveu sobre o poder feminino no culto aos orixás; a histórica III Conferência Mundial contra o Racismo, em Durban (África do Sul), que abriu caminho para as ações afirmativas no Brasil; a constitucionalidade das cotas raciais, que defendeu em audiência pública no Supremo Tribunal Federal.
Sueli Carneiro participou da luta contra a ditadura; hoje engrossa as fileiras em defesa do estado democrático de direito com a Geledés e a Coalizão Negra por Direitos, formada por mais de uma centena de organizações do movimento negro brasileiro. Sábado passado, o historiador Luiz Antonio Simas, emocionado com a interpretação de Gilberto Gil em show virtual com a cantora Iza, escreveu sobre “Tempo Rei”, a canção:
“Para os bakongos, Kitembo (ou Ndembu, ou Tempo, como é mais conhecido no Brasil) é o Senhor do Tempo em todas as suas dimensões… Seu símbolo maior, a bandeira branca, é referente aos tempos primordiais em que os bakongos eram nômades e tem um sentido belíssimo. Diz um mito famoso que, quando queriam mudar de lugar, os povos deveriam louvar Ndembu e erguer a ele uma bandeira branca. Quando o vento soprasse na bandeira, a direção que o grupo deveria tomar estava estabelecida. Outra versão fala da bandeira branca como um símbolo dos caçadores, que a erguiam durante as caçadas para que o grupo não se perdesse na jornada. A bandeira fincada também significa que a casa foi encontrada e a ela todos os de bom coração são bem-vindos”.
Com escritos e presença, Sueli Carneiro é bandeira que orienta a caminhada, indica o alvo, demarca o território das mulheres e da juventude negras. É com ela que se aconselham e lutam; nela se inspiram e fortalecem; dela se alimentam e se orgulham. A ela, gratidão. E vida longa.