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Surreal

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Os surrealistas nunca pregaram a teoria da terra arrasada. Queriam um futuro diferente, mais divertido, mais debochado. Foto: Obra do surrealista Vladimir Kush

Ingo Ostrovsky, 50emais

 

Eu me preparei para escrever uma crônica sobre surrealismo, aproveitando que tantos brasileiros vivos consideram surreal o que estamos vivendo, situação que tirou da vida mais de 500 mil outros brasileiros.

É um equívoco, minha senhora. Tá errado, meu senhor.

Não há nada sequer próximo do surrealismo na nossa realidade. Alguns podem achar surreal que o ministro responsável pelo destino do nosso dinheiro se divirta inventando maneiras de aproveitar o lixo dos restaurantes. Só que isso não tem nada a ver com o que Andre Breton publicou no seu Manifesto Surrealista de 1924, quase 100 anos atrás. A Europa vivia a ressaca da Primeira Grande Guerra – que na época aliás, ainda não tinha o aposto “primeira”, e tinha sido sangrenta e sofrida para vencedores e vencidos. Breton dizia que ‘sonho e realidade’ poderiam se juntar numa coisa só, que ele classificava como ‘sobre-realidade’ ou, em francês, surrealitée – daí vem o nome do movimento.

Os arrotos sobre pátria, família e religião que hoje ouvimos de autoridades de alto coturno (coturno aqui não é apenas figura retórica) eram considerados como valores a ser combatidos. O bom gosto e o decoro deviam ser subvertidos, mas isso não quer dizer que os destemperos do motoqueiro-mór sejam surrealistas. Artistas, poetas e intelectuais como Breton, Miró, Dali, Picasso, Paul Éluard, Antonin Artaud, René Magritte – para citar somente alguns – eram subversivos sim, na forma e na arte, mas tinham cultura e educação. Não dá para comparar com a turma do Palácio da Alvorada, nem com os de dentro, nem com os do cercadinho lá de fora. Muito menos com atitudes estapafúrdias e campanhas contra a vida.

Muitos vão ver surrealismo no fato de que os amantes brasileiros de futebol estejam curtindo mais a Eurocopa do que a Copa América. Faz sentido e não tem nada de surrealista, pelo contrário. Ponha-se no sofá em frente à TV e se imagine no lugar de Messi ou de Neymar. Você iria ver Venezuela ou Bélgica? Bolivia ou Itália? Paraguai ou Alemanha? Colombia ou Holanda? E nem falamos de Portugal, Espanha e Inglaterra. Surreal é os jogos europeus não serem no mesmo horário dos sul-americanos, isso sim seria subversão. Mas não, o futebol do terceiro mundo cede o horário nobre ao futebol do terceiro milênio!

Uma das grandes obras do surrealismo, A Idade do Ouro frequentou as telas de cinema. Era dirigido pelo mexicano (nascido na Espanha) Luís Buñuel juntamente com o pintor Salvador Dali. Para se ter uma idéia do escândalo provocado na estréia, o filme esteve proibido por quase 50 anos. Sexo, família e religião eram escandalosamente retratados em cenas que, tanto Buñuel quanto Dali diziam que haviam sido “sonhadas”. Uma frase do roteiro ficou famosa: “Que felicidade ter assassinado nossos filhos”. Talvez coisa parecida seja sussurrada hoje na Capital federal, mas isso não tem nada a ver com surrealismo, é maldade pura.

O surrealismo combateu o fascismo espanhol de Francisco Franco, o italiano do motoqueiro Mussolini e a filial portuguesa de Salazar. Foi dos primeiros a denunciar as arbitrariedades nazistas de Hitler. Essa extrema direita perseguiu, prendeu, exilou e proibiu centenas de obras de artistas, poetas, cineastas e dramaturgos que nas décadas seguintes conquistariam respeito e admiração do mundo civilizado. O desmonte da cultura em nosso país não tem nada de surrealista, é só burrice e barbárie. É como jogar gasolina na floresta e acender um fósforo.

Os surrealistas nunca pregaram a teoria da terra arrasada. Queriam um futuro diferente, mais divertido, mais debochado, menos sério, menos dogmático. Nada a ver com o Brasil de hoje.

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