Márcia Lage
50emais
Coloquei duas batatas doces na panela e ouvi a voz da minha mãe dizendo: Não coloque muita água para cozinhar. Apenas o suficiente para cobrir a metade delas. Assim elas ficam sequinhas, quase como assadas. Água demais elas derretem e perdem o sabor.
Ela repetiu esse ensinamento por tantas vezes que nunca me esqueço dele. Vale para batatas, couve-flor, milho verde, carne de panela.
Muita água é para sopa, mesmo assim, nunca em dobro dos legumes ou do macarrão. Dois dedinhos a mais e vira uma xanguana.
Minha mãe usava palavras estranhas, que a gente achava que eram inventadas. São palavras de origem africana, entendidas pela sonoridade.
Xanguana significa sem graça, sem sal, e possivelmente deriva da língua Changana, falada em Moçambique. Coisas de Minas, estado escravocrata.
Em Agosto minha mãe se foi. Quando me recordo dos seus ensinamentos, essa verdade salta ao olhos e costuma escorregar em suaves águas. Pouca, o suficiente para cozinhar o luto e deixar que ele fique sequinho e doce.
É um privilégio viver 68 anos com uma mãe nos ensinando coisas: A fivela do sapato é sempre para fora, ela me explicou quando eu tinha dois ou três anos de idade.
Nessa fase me revelou também o truque de abotoar as blusas de baixo para cima, para que as duas partes ficassem iguais.
Por volta dos seis, sete anos, brincou de casinha comigo e me ensinou a fazer arroz. Depois, a enfiar as meias sujas nas mãos e esfregar as roupas mais finas como se estivesse de luvas. As meias ficavam limpinhas e o tecido não corria risco de se esgarçar.
O pudim de leite condensado não pode ficar boiando no banho-maria, senão entra água pela tampa, ele balança ao cozinhar e fica feio.
Quando se planta uma muda qualquer, deve-se esperar o cair da tarde e molhar em seguida. Mesmo se a previsão for de chuva. Assim a muda não murcha e pega ligeiro.
Tantas coisas que ela ensinava. De vez em quando, eu dizia: Vou trabalhar e ter dinheiro para pagar uma empregada, não quero ser dona de casa como a senhora.
Ela respondia: Fazer trabalhos domésticos – e fazer bem feito – não é nenhuma desonra. Além do mais, quem não aprende, não sabe ensinar.
Os empregados têm que entender as ordens, senão não pegam o jeito da casa. E, para entender, têm que ter exemplo.
Muito tempo depois de muitos outros ensinamentos, tive uma chácara. Sabia ensinar e tive ótimos caseiros. Quando minha mãe ia lá ampliava a escola. Ensinava-os a criar galinhas, chocar os ovos, matar, depenar, partir os pedaços nas juntas certas e fazer a galinhada dos sonhos.
Gostava de arrancar mandioca, colher milho verde para fazer curau ou angu, que acompanhava guisado de chuchu verdinho (pouca água) e taioba macia de rolar na língua feito creme.
Respeitava as fases da lua e o tempo certo de plantar e colher.
Também conhecia as ervas e suas propriedades, fazia chás para todas as doenças, sabia nomes de árvores e desmentia qualquer aplicativo de tempo.
O céu cinzento, armando chuva, e ela afirmava com toda certeza: Não vai chover tão cedo. Isso é poluição.
Se o por do sol era vermelho como mercúrio, profetizava: sinal de frio. Preparem as cobertas.
Minha mãe aprendeu com a mãe dela e eu aprendi com ela. Sei de tudo isso, menos cortar couve bem fina. A tábua de picar não permite o ponto certo da minúscula espessura das folhas, que só se consegue enrolando-as bem apertadas na mão esquerda e a faca afiada na direita faz o trabalho perfeito.
Eu tinha medo de me cortar e ela dizia: Dá isso aqui. Couve grossa não presta. Sem nenhum arranhão, transformava em verdes fios de cabelo as folhas colhidas na sua horta, nossa permanente segurança alimentar.
Já velha e esmorecida, foi transferindo suas habilidades ao ajudante.
O tempero de alho e sal com sete ervas. O doce de leite com uma xícara de açúcar para cada litro, de preferência comprado diretamente de um criador de vacas.
O pão de queijo com seis ovos, polvilho escaldado em leite quente e óleo, prato fundo cheio de queijo ralado.
A rosquinha de nata, enrolada feito trança, uma arte.
Oitenta e cinco anos foi o tempo que ela levou para aprender e ensinar.
Sessenta e oito anos foi o tempo que frequentei sua escola.
Tirando a couve que não aprendi a picar, o resto eu sei. Pode ser que nem use. Que nem transmita a ninguém tantos arcaicos costumes.
Mas me lembrarei dela pelo tempo que me resta, com um ensinamento útil do despertar ao dormir.
Aprendi com ela, inclusive, a não sofrer demasiado pelo que não tem remédio. Remediado está, ela dizia. E seguia em frente, resoluta.
Sigo sem ela, com minha bagagem de pequenas sabedorias.
Esta crônica é uma das mais lidas de Márcia Lage para o 50emais. Por isso, estamos publicando novamente.
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