Márcia Lage
50emais
Um cabresto para o número 367
Uma rédea para o número 13
Um bacheiro para o número 322
Um chicote para o número 247
Uma cela para o número 88
Uma capa de canivete para o número 45 ….
O que é isso? Deve estar se perguntando meu querido leitor. Calma, já explico.
Fui catar morangos orgânicos no município de Carvalhos, nas terras altas da Mantiqueira, e caí numa festa religiosa em homenagem a São Lázaro, cujo ponto alto é uma cavalgada da cidade até o Pico do Muquém, ao pé do qual se ergue uma capela em louvor ao Santo.
O pico, no contraforte da Serra da Boicana, tem 1607 metros de altitude e uma paisagem de neblina propícia ao cultivo dos tais frutos de origem europeia e à produção do bom queijo mineiro.
Eu jamais havia visto tantos cavalos juntos nem tanta gente tão fiel a eles, nesses tempos modernos.
Nos dias atuais, cavalo é artigo de luxo, devido ao comércio de embriões. O chique é ter haras e criar animais de raça, puro sangue com pedigree, que podem custar mais caro que uma Ferrari. Negócio e hobby de milionários.
Na cavalgada de Carvalhos, porém, só havia pangarés. Montarias do povão, nascidas ao natural nos pastos dos pequenos fazendeiros. Animais pé-duro, como se diz na roça, de pelagem fosca, baixa estatura, pau-pra-toda-obra pela resistência e poucos cuidados no tratamento diário.
Às centenas, talvez milhares, arreados com esmero para o evento, os animais se concentraram na praça da pequena cidade. A uma da tarde do sábado de céu azulíssimo, partiram com seus cavaleiros rumo à capela: Velhos contritos, rapazes alegres, moças maquiadas, crianças pequenas já no domínio dos trotes, dos galopes e das marchas.
Decerto aprendem a montar ainda bebês, com os pais guiando os poltros pelas rédeas, até que crescem e adquirem destreza para trabalhar nas acidentadas propriedades familiares.
É dessas atividades centenárias, meu caro leitor, que lhe apresento os substantivos anunciados no sorteio que abre essa crônica. São objetos de uso obrigatório do cavalo ou do cavaleiro, que causaram furor entre os presentes, vestidos a rigor para o evento.
De perneiras, botas altas, chapéu, cinto de couro com chicote do lado direito e canivete do lado esquerdo, moças e moços fazem da equitação um estilo de vida próprio, que Guimarães Rosa descreveu em “Grande Sertão – Veredas’, e que continua igual, nos sertões mineiros.
Lugares onde cavalo e gente são um corpo único, um meio de vida e uma paixão. Os adereços das montarias chegam ao meio urbano com outro sentido. Você já ouviu falar em voto de cabresto? Pois então, cabresto é a corda que se usa para amarrar um animal em algum ponto fixo e mantê-lo dócil, à espera do dono.
Com certeza você também já ouviu uma pessoa autoritária berrar para o mais fraco: “Eu que mando aqui e você tem que andar sob as minhas rédeas”! Rédea é o comando do cavalo, uma corda presa à boca dele por um freio de metal. Se ele sai da marcha, puxa-se a rédea, a boca machuca e o animal volta a andar do jeito que o dono quer.
Sindicalismo pelego foi uma expressão muito usada nos anos de luta pela democracia. Pelego é a manta que se põe sobre o arreio (ou cela) para dar conforto ao cavaleiro. Peleguismo seria um sindicato mais preocupado com os que montam do que com os que são montados, digamos assim.
Bacheiro é um tipo de amortecedor para os cavalos. Fica debaixo da cela, para evitar ferimentos no animal. “Não sou seu bacheiro’ é uma expressão que pessoas exploradas usam muito, quando caem em si. Pode não fazer sentido nas grandes cidades, mas no meio rural todo mundo entende.
Em Carvalhos, as mulheres tomam ao pé da letra a expressão cavalgando em pé de igualdade com os homens. Ambos pulavam de contentamento quando eram contemplados com os acessórios sorteados no evento.
Não pense você que a modernidade ainda não chegou nesses rincões. Todos os cavaleiros portavam celulares e faziam selfs. E a feira de comes e bebes no ádro da igrejinha aceitava cartões e pix.
Entre uma cerveja e outra, os cavaleiros(as) faziam fila para tocar na imagem de São Lázaro no interior da capela. Tiravam os chapéus solenemente, rezando baixinho, para pedir bênçãos.
Vendo aquela gente fervorosa, vivendo do que a terra dá, não duvidei que a fé remove montanhas.
Para morar e produzir no alto das montanhas mineiras, só mesmo com a ajuda de Deus e a força de mil cavalos.
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