Márcia Lage
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Dolores foi despertada por uma voz que lhe dizia: Você está começando a ficar demente. Procure um médico. Eram três e meia da manhã e Dolores não dormiu mais.
Ficou pensando na mensagem do sonho e fazendo uma retrospectiva de sua vida nos últimos anos.
De fato, havia percebido mudanças em sua maneira de ser desde a pandemia. Até aí, nenhuma novidade. Todo mundo com quem convivía havia se tornado um pouco diferente depois da longa passagem do vírus da Covid.
O que mais a afetara foi o isolamento compulsório e a tristeza das cidades vazias de seus habitantes.
Nos dois primeiros anos da pandemia, Dolores comprou um carro e saiu dirigindo sem rumo para lugares aonde se sentia mais livre.
Cortou o país de norte a sul e numa dessas viagens foi tomada pelo pânico. Não pela Covid, que já estava debelada, mas pela chuva forte que derrubou barreiras e matou gente por onde ela passava.
Acordou um dia completamente perdida.
Chorava, depois de muitos e muitos anos de tranquilidade emocional e genuína alegria de viver.
Pela primeira vez na vida sentiu necessidade de buscar ajuda psiquiátrica.
Não conseguia dormir e não tinha vontade de sair do lugar. Embora estivesse muito longe de casa.
Conseguiu uma consulta online. O médico lhe receitou um ansiolítico levíssimo, em dosagem infantil. Funcionou.
Dolores vendeu o carro e voltou para casa de ônibus, descobrindo que o Brasil não é um país para fracos.
Talvez tenha sido a partir deste momento que a demência começou a se instalar, pensava Dolores.
Ela nunca mais conseguiu parar em nenhum lugar e tomou gosto por perambular pelas cidades turísticas, casas de parentes e amigos, sem esquentar lugar.
Tinha uma mala de mão e uma mochila. Assim viveu, até o dia do sonho.
Estava com 68 anos e havia decidido parar de viajar, alugar uma casa e aquietar-se por um tempo.
Aquela cidade era a que havia escolhido: bonitinha, calma, de bom clima e custo de vida barato.
Mas quando pensava em arrumar, decorar, lavar, passar, cozinhar, vinha-lhe uma preguiça mortal.
Não queria mais ser nômade. E não queria se assentar. Acima de tudo, havia chegado a um estado de ânimo que era pura lassidão.
Nada lhe agradava, ofendia ou irritava. Tinha meditado tanto, praticado tanta Yoga para atingir esse estado de espírito e agora que o encontrara vía que ele era falso.
Não estava na presença plena que as práticas meditativas propõem, mas na ausência plena, na indiferença insossa, na falta de propósito, de desejo ou paixão.
Se o mundo acabasse, que a encontrasse dormindo e fizesse pouco barulho, era o máximo que desejava.
Dolores decidiu consultar um neurologista.
Pedir uma ressonância magnética da cabeça e mapear as partes do seu cérebro que haviam se apagado.
Sua saúde física estava ótima. Tinha acabado de fazer um check-up.
Mas algo em sua essência estava sendo tomada por uma nebulosidade que a deixava sem ação.
Pelo sim, pelo não, voltou para a academia e começou a malhar diariamente.
Quem sabe produziria alguma endorfina que a fizesse se sentir mais viva.
Até agora, nada.
Aguarde o próximo capítulo.
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