Uma ótima reportagem, de Jana Sampaio e Sofia Cerqueira, para a revista Veja, sobre pessoas que passaram dos 90 anos e continuam ativas, levando uma vida plena. São símbolos admiráveis de longevidade, neste novo mundo habitado cada vez mais por idosos. Qual seria o segredo por trás de cada um desse longevos? Um estudo com nonagenários ativos e saudáveis mostra que longevidade tem tudo a ver com otimismo, senso de propósito e uma curiosidade insaciável. Foi o que as duas repórteres observaram nos nonagenários com quem conversaram para fazer a reportagem.
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“Atendi pacientes no meu consultório em Mogi das Cruzes até o início da pandemia. Atribuo a alguns fatores ter chegado bem a esta idade: levo vida regrada, cuido da alimentação, jogo três horas de golfe por dia e faço planos para o futuro.” Nobolo Mori, 96 anos
Até pouco tempo atrás, chegar aos 90 anos era um feito para poucos, e quem alcançava essa idade mal se levantava da poltrona ou da cama. Com os avanços da medicina e da qualidade de vida nas últimas décadas, porém, os nonagenários não só deixaram de ser raridade, como vêm demonstrando que podem, sim, levar uma vida ativa e prazerosa. Empenhada em desvendar a trilha para uma vida boa aos 90, a antropóloga Mirian Goldenberg acompanhou durante seis anos o cotidiano de 100 pessoas lépidas e fagueiras nessa faixa etária e listou as características comuns da turma: independência, curiosidade, informação, capacidade de escolha e uma dose elevada de alto-astral. Todos se exercitam, levam vida regrada, gostam de rotina, desenvolvem algum projeto e desfrutam com avidez o momento presente. A fórmula não é nova, mas surpreende que ela se aplique a uma fase que costuma ser associada a decadência e dependência. “Eles representam a nova e possível velhice, que é chegar à idade avançada de forma autônoma, saudável e com propósito”, diz Mirian.
Distantes da imagem do velhinho que não dá um passo sozinho e vive na dependência de filhos e netos, os superidosos, como são chamados, nunca param de aprender e estão conectados a todo tipo de novidade, inclusive as tecnológicas. O cirurgião Nobolo Mori lembra que nos anos 1960, quando dizia aos amigos e à família que viveria até os 120 anos, era levado na brincadeira — naquela época, a média de vida do brasileiro não superava os 52 anos. Hoje, no auge de seus 97, sente-se disposto e animado. Até o início da pandemia, ainda atendia vinte pacientes todos os dias em seu consultório em Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo.
As consultas foram suspensas, mas continua a jogar três horas de golfe de segunda a segunda e a ler regularmente livros de medicina e filosofia, a maioria em japonês, sua segunda língua. Há três anos passou 24 horas dentro do avião para ir a um casamento no Japão. “Se tiver chance, quero viajar de novo. Ainda sou muito jovem,” afirma.
Neuza de Carvalho, 91 anos
“Acompanho o noticiário, leio três livros ao mesmo tempo, resolvo praticamente tudo sozinha e compro muito pela internet. Temos de nos adaptar às novidades e manter sempre a cabeça ocupada.”
Diversas pesquisas comprovam a relação da longevidade com uma vida plena, produtiva e positiva. Um estudo das faculdades de medicina da Universidade Boston e Harvard com 71 000 pessoas ao longo de trinta anos mostrou que os otimistas têm vida 11% a 15% mais longa do que os pessimistas e chance 50% a 70% maior de chegar aos 85 anos. Outro levantamento, este da University College de Londres, revela que as pessoas que conseguem preencher bem seu tempo ganham, em média, dois anos de vida em comparação com quem leva uma existência vazia.
A funcionária pública Nalva Nóbrega, de 93 anos, se casou jovem, teve cinco filhos, fez três faculdades e, aposentada do Tribunal de Contas da União, em Natal, não para de se reinventar. Tem dois livros publicados (o terceiro está no forno), já gravou seis discos e, desde o ano passado, protagoniza lives tocando piano em seu canal no YouTube. Ufa. “A gente não pode se abandonar só por causa da idade. É preciso renovar o entusiasmo todos os dias”, ensina. As lições embutidas no cotidiano dos nonagenários pesquisados embasam o novo livro de Mirian, A Invenção de uma Bela Velhice, lançado pela editora Record.
Envelhecer, de fato, ganhou outro significado nos últimos tempos. Levantamento recente divulgado nos Estados Unidos projeta que metade das crianças nascidas no país no ano passado chegará aos 105 anos. Na última década, o número de nonagenários no mundo praticamente dobrou, uma tendência que se replica no Brasil, onde eles representam 0,40% da população e devem chegar a 2,2%, ou 5 milhões, em 2060 (veja o quadro abaixo). “O Brasil está envelhecendo rapidamente. Vivemos a chamada transição demográfica, com taxas de mortalidade e de fecundidade em franca queda”, explica o demógrafo José Eustáquio Alves. No universo dos que passaram dos 90, a ciência qualifica como superidoso aquele que apresenta desempenho intelectual igual ou superior ao de pessoas de 50 a 60 anos em testes de memória, autoconhecimento e raciocínio lógico. “Minha família diz que meu cérebro tem de ser investigado, porque me lembro absolutamente de tudo”, brinca a enxutíssima Nalva.
Soma-se à acuidade mental um histórico de idoso saudável, que não sofre de doenças crônicas e não faz uso de medicação contínua. “Fiz um check-up há poucos meses e não acusou nada”, orgulha-se Mori. Em comum, os nonagenários bem-dispostos acompanhados por Mirian levam uma vida regrada há décadas. A pesquisa, no entanto, ressalta que não existe um modelo único para aproveitar a idade avançada. “A beleza da velhice está na possibilidade de ela ser inventada por cada um de nós. Os meus entrevistados são felizes fazendo o que gostam”, observa a antropóloga. A bióloga Neuza Guerreiro de Carvalho, 91. anos, que mora sozinha, dedica-se a acumular conhecimentos sobre temas variados — e tem os certificados para provar. Depois de se aposentar e ficar viúva, há duas décadas, ela voltou às salas de aula USP, onde se formou em 1951, e já concluiu meia centena de cursos semestrais. “Não quero ficar parada no tempo. Tenho um blog onde escrevo um diário, faço reuniões virtuais e compro tudo pela internet,” conta Neuza.
“Continuo muito vaidosa. Uma pessoa na minha idade não pode se largar. Tenho mil atividades. Escrevo, pinto e, desde o início do isolamento, venho postando lives tocando piano em meu canal no YouTube.”
Em contraposição à “velhofobia” — o medo de ficar velho, somado à discriminação contra quem já chegou lá —, idosos bem resolvidos costumam esbanjar “velhoeuforia”, esmerando-se em dispensar a opinião alheia, aventurar-se a fazer o que realmente quer e aprender a dizer não. Bom humor e fé religiosa também são apontados como ingredientes de uma velhice mais saudável. O psiquiatra americano Gene Cohen (1944-2009), pioneiro na saúde mental geriátrica, ressaltou ainda em seus livros a importância da criatividade, que, em qualquer idade, ajuda a pessoa a renovar paixões e se reinventar. “É preciso aceitar a passagem do tempo, viver o hoje e parar de achar que quando jovens a vida era melhor”, frisa o artista plástico niteroiense David da Costa, de 92 anos. A medicina comprova que a genética é responsável por 30% da vida longa. Os outros 70% dependem da forma como cada um escolhe como vai envelhecer. Em tempo: todos os +90 ouvidos para esta reportagem foram vacinados contra a Covid-19.
Publicado em VEJA de 23 de junho de 2021, edição nº 2743
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