Márcia Lage
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Eu surtei na pandemia. O primeiro surto foi de revolta. O cretino do novo coronavirus desfez planos frescos, que eu estava começando a pôr em prática: uma pós-graduação em Arte da Escrita na Universidade Nova de Lisboa. Tinha concluído o primeiro semestre e haveria ainda mais três. Dois anos na Europa, num agradável convívio com estudantes, escritores, bibliotecas, viagens, vinho e arte. Dois anos para analisar, de longe, o caminho político que o Brasil ia tomar.
Sou democrática e acato com respeito os resultados de eleições livres e diretas. Mas daí a conviver com governantes que me desagradam é outra conversa. Peguei meu direito de ir e vir e fui cantar noutra freguesia, pois como diz o ditado, os incomodados que se retirem. Aí a pandemia me fez voltar, porque só milionário pode transferir sua aposentadoria para um país cuja moeda é o euro e a sua é uma das mais desvalorizadas do mundo. Então, tive muita raiva.
Detestei mais ainda quando cai no meio de pessoas, da direita e da esquerda, fora os ignorantes, que transformaram em guerra política uma questão de saúde pública. Surtei. Tive vontade de sair correndo até à Patagônia, por caminhos que não me fizessem cruzar com nenhum ser humano – porque além de muito antipáticos naquele momento, poderíamos trocar o vírus assassino, e aí a culpa seria minha. Pois havia sempre um dedo em riste apontado para mim toda vez que punha a cabeça para fora da linha da loucura, no desespero de respirar ar puro e bom senso.
Sou rebelde por natureza. Não é porque me mandam ficar em casa que vou obedecer. Mesmo numa pandemia. Comprei um carro, meio de transporte que havia abandonado há anos, por stress e por convicções de consumo consciente, questões ambientais, etc. Eu precisava tomar uma atitude, senão teria que tomar ansiolíticos, e isso, só em caso extremo, o que não era o caso.
A gasolina ainda era permitida. Botei o pé na estrada. Visitei parentes e amigos, sempre de máscara e sempre perguntando antes se queriam me ver. Minha mãe ficou exultante. Declarou que já estava na hora de morrer e que preferia pegar Covid a ficar reclusa em casa. Ela nem liga mais a TV sem auxílio de alguém, muito menos tem celular para fazer chamadas de vídeo. E, se tivesse, não seria a mesma coisa que tomar o café da tarde com um filho rindo e falando besteira para alegrá-la.
Confesso, como Neruda, que vivi para baixo e para cima, com cuidado e com segurança, guardando distância das pessoas – distância que, na minha insuportável intolerância, podia ser de quilômetros, não apenas de dois metros. Não queria gente, queria lugares. Queria alijar-me do noticiário e das conversas do povo: Um disco arranhado numa rádio que nunca desliga, isso é o que me parecia.
Foi então que uma amiga inglesa, que herdou uma fazenda no Brasil, contou-me do desejo de reflorestar os antigos pastos, com mudas nativas da Mata Atlântica. Deixa comigo, falei na hora! E me instalei na fazenda onde não há TV nem Internet e fugi do mundo plantando árvores. Já são mais de mil mudas, que possivelmente eu não verei crescidas. Ou talvez sim, quem sabe.
O importante é que continuo plantando, e colhendo sementes e fazendo um viveiro, e já comendo da horta que estava abandonada, das bananeiras que foram limpas e adubadas. De manhã, se não chove, trabalho na terra. De tarde leio e escrevo.
E desse silêncio, desse recolhimento que só monges tibetanos conhecem, nasceram dois livros infantis, um romance, um livro de contos, uma publicação coletiva com amigos de Paraty, duas seleções em prêmios literários e uma biografia em curso, que não garanto que termino se voltar a viver em sociedade.
Agora que a vida volta ao normal já fui conhecer a seresta de Conservatória e o sarau literário da cidade, onde tive coragem de declamar uma poesia de Carlos Drummond de Andrade, meu conterrâneo de Itabira. Mas não fiz amizade, acho que não quero mais intimidade com ninguém. Só com a arte e com a natureza. Deve ser efeito colateral da pandemia.
Um homem (ou uma mulher, claro) para se realizar tem que fazer um filho, escrever um livro e plantar uma árvore, disse o escritor português Eça de Queiroz. Eu não quis ter filhos, por necessitar demais de liberdade, mas tenho plantado e escrito tanto que me sinto plenamente realizada.
E, pensando bem, as três coisas convergem para o mesmo resultado. Ao fazer um filho, escrever um livro ou plantar uma árvore estamos tão somente carimbando nosso passaporte na Terra. O que fizemos se desenvolve à nossa revelia, e desapegar-se dos resultados é o grande ensinamento. Nem filho, nem livro nem árvore nos pertence. Pertence ao propósito da Vida. De se perpetuar em qualquer circunstância. Mesmo nos equívocos políticos e nas pandemias.
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