Márcia Lage
50emais
Se eu fosse chargista, se tivesse um mínimo de talento para expressar-me por imagens, resumiria num desenho o que eu penso do capitalismo, esse sistema econômico que nos domina desde a Idade Média.
Seria algo assim: uma paisagem desértica com um poço ao centro. Homens matam as mulheres que acabam de coletar água para levar para casa. E aproveitam também para estuprá-las, já que não poderão gritar nem correr.
Na ponta esquerda da paisagem, vem um burro estropiado, puxado pelo cabresto por um andrajoso camponês. Ambos estão com sede e buscam pelo poço, cuja água coletada pelas mulheres escorre das latas para o deserto. Os homens já mataram a sede e as mulheres, agora, se matam pelo domínio da fonte.
À direita, trabalhadores acorrentados quebram pedras para erigirem uma proteção ao Palácio, que se vê ao fundo. Eles já não alcançam a altura da muralha e sobem uns sobre os outros para concluir a obra. Não conseguem ver, lá dentro, a fartura dos pomares e a beleza dos jardins, onde famílias abastadas passeiam juntas, sem noção também do que ocorre fora.
Em primeiro plano, numa espécie de penhasco, aves de rapina aguardam o desfecho de todas as cenas para se alimentarem da carniça, sem moverem uma pena de suas lustrosas asas.
A ilustração me veio à mente quando li sobre uma cápsula de nitrogênio que a The Last Resort, empresa suíça, desenvolveu, para que as pessoas possam tirar a própria vida, pressionando um botão que libera nitrogênio lá dentro.
Com o sugestivo nome de Sarco (de sarcófago, ou caixão), o indivíduo determinado a morrer entra nele por livre e espontânea vontade e aciona um botão, que libera nitrogênio, matando-se suavemente, enquanto os médicos, responsáveis pelo suicídio assistido, lavam suas consciências e embolsam 18 francos suíços, equivalente a pouco mais de 120 reais, pelo uso do nitrogênio.
A empresa que teve a ideia de criar o Sarco é a The Last Resort. Que ironia! Ao pé da letra, não significa O Último Refúgio, como sugere a palavra resort, sinônimo de grandes hotéis com tudo incluído, desde comida a lazer. Significa O Último Recurso, mas o duplo sentido não deve ser em vão. As aves de rapina do capitalismo são boas de marketing.
The Last Resort, inclusive, é o nome de uma música da banda Eagles, cujo hit Hotel Califórnia todo mundo já ouviu e dançou. The Last Resort fala exatamente de um paraíso perdido, onde “alguns homens ricos vieram e estupraram a terra. Ninguém os impediu. Puseram um punhado de caixotes feios e Jesus, as pessoas compravam”.
A letra fala do capitalismo selvagem. De como ele se apropria de tudo que é belo, que é puro e genuíno, para obter lucro. Será que a banda tem conhecimento de que o nome de uma de suas músicas foi confiscada por uma empresa que vende suicídios?
Pessoalmente, eu sou a favor da eutanásia e do suicídio assistido. Não vejo sentido em uma pessoa ser mantida viva se seu corpo, sua mente e talvez até seu espírito já não dão sinal de presença na terra. Mas, daí a fazer disso um negócio é um tanto quanto abusivo.
Fere toda ética humana, põe no balcão de negócios conceitos morais, religiosos, noções de fé, esperança, dignidade, resiliência, livre arbítrio, amor à vida, respeito…
Com tanta gente se matando e matando-se uns aos outros, vem uma rapina do capitalismo suíço, país cuja riqueza se consolidou por meio de paraísos fiscais e indústria química e farmacêutica, e oferece, quase de graça, uma forma “limpa” de autoexterminio.
Confesso que fiquei assustada. Essas coisas não vêm à toa. Depois de transformar o mundo numa favela insuportável, com metade da riqueza do planeta nas mãos de apenas 1 por cento da população, isso é quase uma “personal atomic bomb”.
Embalada num sarcófago, com pseudos direitos de escolha livremente acordados, e a risada final dos urubus: morram, desgraçados! Vocês estão atrasando nosso banquete. O banquete dos mendigos no paraíso estuprado.
Valei-me São Miguel!
Leia também de Márcia Lage:
Minhas preciosas quatro mudas de jacarandá da Bahia
Mais do que um legado, Sebastião Salgado deixa um exemplo
Aos 79, Marly decide voltar a viver na pequena cidade onde nasceu
Em busca de um programa de ecovilas para idosos
Cavalos e cavaleiros fazem a festa de Sâo Lázaro
A energia renovadora de uma criança alegre
O reencontro alegre e divertido de sete irmãs
Tecnologia é injusta com idosos e com quem tem poucos recursos
O fogo sagrado de Pentecostes me ungiu
Por que você tem que assistir ao filme “As Órfãs da Rainha”
Mulheres estão parando de dirigir depois dos 60
Com a idade, vida sexual não acaba? Quem disse?
Jardinagem como terapia e prevenção de doenças