Márcia Lage
50emais
– Estamos falando com uma parede – resume o japonês de cabelos oxigenados, decepcionado com a falta de respostas para suas perguntas, na reunião da comunidade para se inteirar de um projeto de turismo, na reserva ambiental onde vivem.
A cena é a única que tem um tom de revolta no filme O Mal Não Existe – do diretor Hyuzuke Hamaguchi, de Drive My Car, Oscar de melhor filme estrangeiro em 2022. Com a mesma repetição lenta de imagens, poucas palavras e ênfase no jeito japonês de ser, o filme é uma denúncia contundente do impacto social provocado pelo avanço do turismo ecológico em todo o mundo.
O personagem loiro se destaca da plateia de japoneses aparentemente calmos e pacíficos, reagindo com raiva à ameaça que paira sobre eles. Os demais usam a tática do Tai Chi Chuan: gentileza e assertividade. Fazem uma série de ponderações que desnorteiam o casal enviado pela empresa para a assembleia e exigem a presença do dono do empreendimento, na próxima reunião , uma vez que só ele poderia dar as respostas corretas.
A jogada fica clara na sequência. De um lado, o casal descobre que está sendo usado como marionete para vender um empreendimento que não tem nenhum estudo sobre o impacto que pode causar à comunidade; de outro, o dono do empreendimento que deseja apenas ficar rico com um projeto governamental pós-pandemia, para conectar mais gente à natureza; e, por último, a comunidade pacata, totalmente integrada àquela pequena floresta de pinheiros e carvalhos, nascentes d’água e cervos, vendo seu mundo ruir da noite para o dia.
O título do filme é uma ironia e permite leitura dupla: para a comunidade, o mal, de fato, não existe. Os cervos podem atacar se provocados, mas como são deixados em paz em seus espaços, convivem em harmonia com os poucos habitantes da floresta.
Veja o trailer:
A água é pura e coletada com reverência pelo único restaurante do vilarejo, que também usa, com parcimônia, o Wasabi selvagem que brota à sombra das árvores, para dar gosto ancestral aos seus pratos.
Todos se conhecem, todos se ajudam, as crianças têm o apoio e a proteção da comunidade, no harmonioso equilíbrio ali instalado. Então o mal aparece, vindo da ambição, do desrespeito, do mal estar das metrópoles pós-pandemia. A paz do pequeno vilarejo começa a ser cozida em fogo brando.
O roteiro pode ser adaptado para qualquer lugar do mundo onde empresas construtoras, mineradoras, de turismo, de transporte, de transformação, de bens e serviços e até do entretenimento, como é o caso no filme, se impõem aos locais com sua fala mansa, ensaiada para cumprir protocolos ambientais somente no papel, com o uso da tática final de corromper os mais resistentes.
Até aí a história é universal. O que me agrada na forma oriental de contar, tanto na produção japonesa quanto nas sul-coreanas que invadem os tapetes vermelhos do Oscar, é a transmissão de uma cultura de reação pacífica aos acontecimentos. Com firmeza e voz baixa, mas sem rendição.
Ando tão cansada de ver o brasileiro violento, grosseiro, possessivo, vingativo e imaturo nas nossas produções cinematográficas, que assistir a filmes como esse é quase uma aula de boas maneiras.
Dá para absorver a intenção da obra, sem os sobressaltos dos tiroteios, dos palavrões, do sexo desnecessário e do exagero da matança, enquanto o desfecho caminha, sempre, para a derrota dos mais fracos e da natureza.
A diferença é que a narrativa brasileira nos exaure. A oriental, nos redime. E ambas refletem (ou perpetuam) a maneira de ser de um povo.
A arte tem esse poder.
* O filme está em cartaz nos cinemas.
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