
Márcia Lage
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Minha tia morreu e me transmitiu, em vida, uma herança maior do que minha mãe: uma mochila de couro de grife, que rodou o mundo com o filho aviador e, depois, comigo mesma, descendente de ciganos e de Hermes, o Deus grego de asas nos pés.
Além da mochila, duas minúsculas telas de paisagens marinhas, que ela mesma pintou com a pouca tinta que lhe coube e com a timidez necessária para não brilhar. E um prato de indescritível forma geométrica, côncavo, quadrado e arredondado nas pontas, com reprodução de uma pintura de Djanira, a mais famosa naif brasileira.
Além de tudo isso, uma toalha de etamine, aquele tecido quadriculado muito usado pelas bordadeiras para confeccionar roupas de cama, mesa e banho.
A minha é verde e branca com motivos natalinos em ponto de cruz, uma das inúmeras prendas domésticas da minha tia. Até a renda do arremate, em crochê branco e vermelho, foi feito por ela, em paciente trabalho de dar sentido e um pouco de beleza à vida besta.
Os quadros decoram minhas paredes e pretendo seguir com eles casas à fora, como uma bênção da tia amada. Porém, outro dia, fazendo a faxina de rotina, derrubei com o cabo da vassoura o prato de rara geometria, que julgava de plástico inquebrável. Era de acrílico e se quebrou em dois, provocando em mim, que não ligo para posses, um esvaziamento de significados.
Gostava do quadro por vários motivos: era presente da tia, uma obra da Djanira em uma cena que se passa em Paraty, cidade onde moramos, em distintas épocas, a pintora e eu. Um burrinho atravessa a antiga ponte de madeira sobre o rio Perequê-açu, deixando para trás a insinuação do centro histórico, com o fundo branco da igreja de Nossa Senhora dos Remédios, um casarão que hoje é restaurante à flor das águas e outro à esquerda, pousada.
Sobre o lombo do burro estão uma mulher e sua filha. Caminhando ao lado, um menino de pés descalços. A mulher segura uma sombrinha vermelha com a mão esquerda. Na direita, tem uma vara para conduzir o animal.
A cena atual, que meus olhos nunca se cansaram de ver e de admirar, seria de uma mãe carregando dois filhos numa bicicleta, com um celular na mão e uma sombrinha na outra. A sombrinha faz parte da paisagem paratiense, onde chove fino de manhã e grosso à tarde. Ou vice-versa.
Esse equilíbrio quase impossível de guiar cavalo, moto ou bicicleta com a prole à bordo e as mãos fora das rédeas e dos guidons deriva do hábito do povo caiçara de remar em pé nas canoas que são seus meios de locomoção. Eu não consigo nem dar tchau para alguém sem parar a bicicleta, muito menos me equilibrar sobre as ondas numa cumbuca de madeira.
O prato da Djanira, vendido em lojas de 1,99, me devora de saudades. Colei-o com cola invisivel, mas a emenda se nota. Fiz uma foto da cena para uma amiga reproduzi-la para mim, em óleo sobre tela. A amiga, que também já foi fotógrafa, bordadeira e o que quisesse ser com seu talento artístico, pegou Alzheimer e não sabe fazer mais nada. Nem abrir a foto que lhe mandei pelo WhatsApp.
A toalha de mesa é uma preciosidade, mas não tenho onde estendê-la. Vivo de deo em deo em apartamentos alugados, sem espaço para festas e sem mesa grande que caiba o forro bordado e a família desmembrada. Não sei o que fazer com a herança, desbancada pelos sousplats e jogos americanos, de mais fácil lavagem nas apertadas lavanderias das quitinetes.
Já a mochila de couro, onde cabia roupas para uma semana, era meu passaporte para as viagens curtas. Foi furtada no porta-malas do carro em Belo Horizonte, depois que os ladrões quebraram o vidro traseiro. Levaram dentro dela um vestido de linho que eu nem devia ter comprado de tão caro, roupas de ginástica e as lembranças dos lugares que ela visitou comigo.
Foi-se a herança da minha tia e ela própria. Junto com ela, meus muitos eus.
De minha mãe herdei apenas um quadro, uma réplica inglesa de cavalos a galope contra um fundo vermelho. Mandei de presente de Natal para ela, no tempo em que morei em Londres e vasculhava as feiras de Camden Town e Portobello Road. O preço da postagem foi maior que o da obra.
O Correio entregou o presente de Natal perto da Páscoa, com um rasgão na parte inferior direita, que minha mãe teve o cuidado de mandar restaurar. Pendurou os cavalos no vazio da parede de um quarto de hóspedes onde eu dormia quando a visitava, para que eu também desfrutasse do presente.
Quando ela morreu, o quadro retornou para mim e o carrego para onde vou, como farei também com as pequenas marinas da minha tia e a Djanira emendada.
Não têm valor algum, apenas o poder de transbordar saudades de pessoas, tempos e lugares que, de repente, nos são subtraídos, por desilusão, descuido, ladrão ou morte.
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