Márcia Lage
50emais
Tateando na escuridão, Mercedes Guedes, 72 anos, despencou escada abaixo, sem visão para segurar na parede ou no corrimão. Bateu com o corpo, do jeito que a gravidade ordenou, em cada um dos 20 degraus projetados por má engenharia, e se estatelou lá embaixo. Perna e braço esquerdos quebrados, hematomas, muita dor.
O filho único, felizmente, estava em casa e a levou ao hospital, de onde voltou temporariamente paralítica. “Além de cega, só me faltou bater a cabeça e ficar retardada também”, ela resume ao me telefonar para contar do acidente, tentando conduzir com humor a seriedade da situação.
Escadas são inimigas dos idosos, Mercedes sabe disso. Mas entre saber e poder há uma distância enorme, que nem todos conseguem percorrer. Desde que ficou cega, há mais de trinta anos – o filho ainda nas fraldas – ela vem mudando de casa, premida pela desatualização monetária de sua aposentadoria por invalidez.
Antes, morava em casas térreas, na área central da cidade, com pátios para fazer suas esculturas e cultivar vasos de plantas. Respirava melhor a tragédia. As casas foram sendo esticadas para a periferia, cada vez menores e escuras. Por fim, aceitou um sobrado geminado num bairro ainda em formação, distante mais de uma hora do centro, sem linha de metrô e com o agravante da escada.
Aconteceu o que até as estrelas sabem: Velhos e degraus são incompatíveis. Enquanto lida com gessos e banhos com toalhas molhadas no andar de baixo, Mercedes procura casas térreas para se mudar, mais uma vez. E quanto mais se afasta do centro, mais gastos ela e o filho têm com passagens de ônibus ou táxis nas emergências. O barato sai caro. E exclui. Mercedes perdeu todo contato com lazer e cultura ao ter que morar na periferia.
Se ela não estivesse toda quebrada, iria para as ruas nessas prévias eleitorais, para implorar aos candidatos que olhem para a população de idosos de suas cidades e comecem a construir espaços para acolhê-los, de forma digna e carinhosa. Sente-se um peso para o filho, que não pode abandoná-la um instante sequer.
É o que acontece com o cabeleireiro Roger de Senna, 51 anos, que não sabe mais o que fazer com a mãe, já com demência galopante. Ele teve que tirá-la de sua cidade Natal, onde tinha casa, e levá-la para a kitinete onde mora, em outra cidade, outro estado, para poder ajudá-la.
A situação se agravou. Perdidas as referências, ela não dá um passo sem ele, que não pode mais trabalhar. Nenhum dos dois tem mais vida. Todo dia ele reduz despesas para ver se se sustentam só com a aposentadoria da mãe. E se desespera.
Militante politico, Roger redigiu um documento e o apresenta a todos os comitês dos candidatos de sua cidade, para pedir que eles se atentem às demandas da população idosa. Sua proposta é que a Prefeitura construa um grande centro de atenção multidisciplinar e multigeracional para os 60+, com edificações e cuidados especificos para cada etapa do envelhecimento.
O primeiro modelo seria uma espécie de vila de casas térreas, para moradia dos mais lúcidos e ativos, sozinhos ou em companhia de cuidadores familiares, como ele. Esses idosos passariam os dias em atividades coletivas que gerem renda para toda a comunidade, como hortas, pomares, padarias e restaurantes.
O segundo modelo seria uma espécie de hotel, para acolher idosos lúcidos mas com alguma deficiência fisica que os incapacite para trabalhar ou locomover. Teriam atendimento voltado para o restabelecimento de suas habilidades e autonomias, nos espaços coletivos de lazer e cultura, refeições e atividades esportivas adaptadas para suas deficiências.
O terceiro modelo seria para pessoas portadoras de Alzheimer, Parkinson e demências, com atendimento médico-hospitalar, fisioterapia, pilates, tratamentos alternativos e paliativos. Os três edifícios funcionariam em conjunto, intercambiando a assistência psicossocial.
Mas não teriam cara de asilo ou prisão. Seriam construídos com beleza arquitetônica e paisagística, em grandes áreas verdes equipadas com o aparato coletivo necessário para atender, com carinho e humanidade, pessoas que merecem um fim de vida respeitoso, com o máximo participação na gestão de seus quereres.
Roger espera que suas ideias sejam, pelo menos, levadas em consideração. Ele não aguenta mais levar sua mãe para uma salinha minúscula no Centro de Atendimento ao Idoso de sua cidade, onde a velha se entedia fazendo casinhas com palitos de picolé. É o máximo de estímulo que têm para oferecer a uma senhora que foi professora.
Suas propostas nasceram da observação desse desleixo para com os idosos e sinalizam para a necessidade de uma mudança total de paradigma na política de atenção a esses cidadãos, levando-se em conta os estágios do envelhecimento, a realidade econômica dos aposentados e a valorização de suas capacidades e habilidades numa rede de proteção, amparo e tratamento que propicie bem estar a toda a família.
Economicamente falando, se cada filho único (mais comum hoje em dia do que há dez anos atrás) tiver que abandonar o trabalho para cuidar dos pais, eles próprios envelhecendo sem tempo para preparar seu próprio futuro, todo o país perde.
Reformar as políticas públicas para idosos não é gasto. É investimento. Daqui a 10 anos, problemas como de Mercedes e Roger serão uma realidade difícil de administrar, se não for reconhecida e atacada preventivamente agora.
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