Márcia Lage
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O mistério é muito enigmático para nos permitir reflexões lógicas sobre ele. Assombrosamente ocorre, instala um ponto de interrogação em nossas cabeças e vira lenda. História para se contar em família, por inúmeras gerações de boquiabertos.
Foi assim com as cinco primeiras filhas da minha avó materna. Nascidas de dois adolescentes, coisa comum nos tempos de antigamente, ficaram órfãs quando a mais velha tinha menos de 7 anos, e a caçula, pouco mais de um ano. Tinham nomes fortes: Maria, Dulce, Helena, Iracy, Cármen.
E Bárbara, a jovem mãe das cinco, que entrou em desatino com o infarto mortal do marido, aos 20 e poucos nos de idade. Permitiu que parentes cuidassem das meninas até se recompor da dor. Mas, ainda no luto, voltou a se casar. Que outra opção tinham as mulheres daquela época, para garantir comida à mesa e um pouco de prazer na cama?
O segundo casamento resultou numa fornada de outros cinco filhos, sem intervalo para trazer de volta as meninas. Bárbara enviuvou de novo e de novo se casou, povoando com mais quatro alminhas o mato onde se escondia. Só parou nos 14 porque a natureza interveio com um ou dois natimortos e a menopausa redentora.
Crescidas longe umas das outras, as cinco primeiras filhas contribuíram com mão de obra doméstica nos lares que as acolheram, seguindo a mãe no destino de casar e parir antes da maioridade. Tiveram, cada uma, oito filhos em média.
À exceção de Dulce, que só teve dois e se achava, às vezes, menos mulher do que as irmãs, por não ter cumprido integralmente a missão de povoar a terra.
O fim dessa geração começou pela caçula, Iracy, morta aos 49 anos, de um ataque cardíaco fulminante, como o do pai. Deixou 9 filhos e uma irmã desconsolada, Cármen, de quem era vizinha e confidente, depois de muitos desencontros pela vida.
Anos mais tarde, morreu a mais velha, Maria, perto dos 70 anos, depois Helena, por volta dos 60. Ambas de câncer. Bárbara teve o desgosto de enterrar as três e mais dois filhos do segundo casamento, antes de partir, aos 93 anos. Deixou de herança para Dulce e Cármen sua longevidade sadia.
As duas passaram dos 85 anos. Cármen faleceu em 2023, no dia 18 de agosto, mesmo dia da morte de Iracy 30 anos atrás. A coincidência da data foi o assunto dominante no velório, acrescido de um sonho que a falecida havia tido meses antes.
Ela se preparava para dormir, mas não conseguia tirar o vestido, agarrado na cabeça. Sufocava pelo esforço quando Iracy apareceu e, caçoando dela, puxou a roupa com um arranco só. As duas caíram abraçadas na cama, se sacudindo às gargalhadas. Cármen acordou bem humorada e comentou o sonho no café da manhã.
Os que estavam no velório e ouviram a história foram unânimes em interpretar que Aracy, no sonho, tinha vindo libertar a irmã do corpo físico já cansado.
E que escolhera o mesmo dia de sua morte para celebrar com grande festa a chegada da penúltima no núcleo familiar, refeito em outros termos, em outra dimensão. Conversas de enterro para amenizar a dor da morte.
Alguns ainda diziam: agora só falta a Dulce. Em outro estado distante, ela resistia, lúcida, saudável e independente.
Envelhecia solitária, longe dos parentes. O filho mais velho havia morrido solteiro. O segundo seguia a vocação da família para grande prole e tinha pouco tempo para a mãe.
Até os 87 anos, Dulce cuidou o melhor que pode da casa e do jardim. Pouco depois do falecimento da irmã, Cármen, recebeu um diagnóstico de câncer de mama. E começou a morrer.
Com diferença de apenas um dia, aproveitou a linda lua cheia de 19 de agosto de 2024 para encerrar também a tarefa de viver.
Termina assim a narrativa sem nexo de cinco mulheres que não tiveram destaque algum, a não ser a coincidência da data do falecimento de três delas.
Uma data enigmática entre os inúmeros sei lá por quê dos eventos perturbadores dessa família feminina, que levou a termo seus destinos inglórios, sem nenhuma procrastinação. Humildes guerreiras do povo, em permanente luta pela existência. E fim!
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