Ingo Ostrovsky, 50emais
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Continuo sem conseguir escrever sobre o nada, sobre coisa alguma, sobre apenas viver. O frio dos últimos dias me manteve em casa, pouco saí, ainda que em algumas manhãs o sol batesse à porta junto com o inverno. Me dediquei a algumas leituras profissionais e devorei o bom e velho Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, em nova edição, com nova tradução, de Cid Knipel. Trata-se de uma alegoria de mais de 60 anos de idade, descrevendo um mundo onde o papel dos bombeiros é atear fogo, coisa que eles desempenham com enorme prazer, especialmente quando se trata de queimar livros.
Queimar livros deve ser fascinante. Eu nunca consegui. Acumulo livros e mais de uma vez me vi na situação de ter que abrir espaço nas estantes, mas não consegui riscar o fósforo. Fiz doações a bibliotecas, vendi para sebos, dei para amigos, mas queimar… me faltou coragem. A queima de livros ficou indelevelmente marcada como uma atitude autoritária desde aquelas longínquas noites entre maio e junho de 1933, na Alemanha recém convertida ao nazismo, em que todos os livros considerados subversivos foram queimados. Subversivo, claro, era todo mundo que discordava de Hitler. A língua alemã, pródiga em acolher novidades, criou uma palavra para a expressão ‘queima de livros’: Bücherverbrennung.
Em Fahrenheit 451, os poderosos defendem a tese de que livros deveriam ser queimados por provocar a infelicidade. Simples assim. A literatura – qualquer literatura – faz as pessoas refletirem sobre a vida, sobre a realidade e isso só pode trazer tristeza e sofrimento, diz o chefe dos bombeiros antes de borrifar querosene sobre uma biblioteca, descoberta após denúncia de cidadãos zelosos de sua felicidade. Ele queima a casa e os livros com grande convicção.
Aqui, entre nós, a Fundação Palmares resolveu expurgar sua biblioteca de livros considerados alheios aos interesses da entidade. Muita gente protestou. Ainda não entendi qual o destino que será dado aos livros rejeitados. Serão doados? Irão para outras bibliotecas? De qualquer maneira, os autores listados pela Fundação estão, na linguagem popular, “queimados”.
Em 1985, dom Paulo Evaristo Arns, então cardeal-arcebispo de São Paulo, assinou a publicação do livro Brasil Nunca Mais, um relato das torturas e arbitrariedades cometidas durante o regime militar. A principal fonte do livro eram os arquivos da Justiça Militar contrabandeados por um grupo de advogados ligados ao cardeal. Os fatos narrados no livro, portanto, não podiam ser negados.
Isso desagradou bastante o Exército, a Marinha e a Aeronáutica. Juntas, as forças armadas resolveram então contar sua versão do que foram os anos de regime militar. Liderados por um grupo coeso, os militares escreveram Orvil – a palavra livro lida ao contrário – uma obra de mais de mil páginas, que narra o que os militares chamam de tentativas comunistas de tomar o poder, desde a Intentona de 1935 até o que eles chamam de contra-revolução de 1964. Orvil nunca foi publicado. Ficou pronto quando os militares já haviam se recolhido de volta aos quartéis. O governo civil resolveu manter o livro inédito. Umas poucas cópias circularam entre as altas patentes, nada mais.
Hoje, Orvil pode ser lido em edições digitais. Eu não li, mas quem leu garante que ali estão as bases do governo Bolsonaro, um governo que continua a propagar a ideia de que os comunistas estão por toda parte, comem criancinhas no café da manhã e querem acabar com o verde-amarelo da nossa bandeira. Não sou comunista e não acredito nisso.
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