Márcia Lage
50emais
Tirei o mês de setembro para ligar para amigos. Sim, isso mesmo que você entendeu: fazer chamada de voz e conversar com eles com calma, o tanto que eles quisessem falar. Nem imaginava que simples telefonemas provocariam tanta alegria.
A primeira pessoa da qual me lembrei está acamada há meses, em virtude de uma queda. Queixou-se bastante do isolamento em casa, no calor e na baixa umidade que foi este mês insuportável.
Tem toda razão de se queixar. O destino não cansa de lhe dar rasteiras. Está muito vulnerável física e economicamente.
A segunda se separou há pouco tempo e não consegue elaborar racionalmente a perda. Tem dificuldade de entrar para o universo dos solteiros idosos, o que para ela é como viver com apenas um lado do corpo.
Suas conjecturas sobre um futuro solitário gerou debate de quase duas horas ao telefone. Tudo bem. Não é como antigamente que conversas como essas custariam uma fortuna. Liguei pelo WhatsApp, que é de graça, usando a Internet da minha casa.
A decisão de fazer chamadas em vez de simplesmente trocar mensagens nasceu da vontade de apurar com mais rigor o estado emocional dos meus afetos.
Esse setembro foi tão desastroso que achei que as trombetas do Apocalipse iriam ressoar em meio à seca, ao fogaréu e à fumaça que nos enrolou a todos num cobertor de cinzas quentes.
Tratei de fazer declarações de amor aos que me são caros. Estamos nos distanciando cada vez mais de nossa afetividade com o uso predominante das mensagens escritas ou gravadas.
Fiz uma seleção dos amigos mais calados, que estão doentes ou que não interagem frequentemente, e liguei para todos eles. Um que mora na Holanda tinha tido a vida virada pelo avesso e eu nem fiquei sabendo. Casou, separou, sofreu, perdeu a mãe e o meu abraço.
Conversar com ele foi como fazer um curativo num coração ferido.
Por causa das dores dele, liguei para uma amiga de Brasília, cuja filha se mudou para o exterior.
Ela estava triste no tal ninho vazio e ficou mais animada ao conversar comigo.
Aí, me lembrei de uma prima que também mora na capital federal e botamos a conversa em dia, como se estivéssemos na mesa de um boteco tomando cerveja e atualizando longas ausências.
E meus irmãos? Fazia tempos que eu não ligava para eles, achando que as postagens no grupo da família eram suficientes. Não eram.
Cada um deles teve uma novidade para contar, deu noticias dos filhos, falou de planos, de sonhos, de derrotas, de medos. Será que estamos nos escondendo uns dos outros com essa mania de mandar memes, vídeos engraçados, bons dias, boa semana, essas bobagens copiadas na rede? Desconfio.
Cheguei até a questionar um amigo que faz isso o tempo todo. Primeiro, no grupo que ele mesmo criou.
O que ele estava querendo dizer com postagens nostálgicas, piadas misógenas, machistas, idiotas? Era um grito de socorro? Ele ficou chateado.
Esperei passar uns dias e o chamei em vídeo. Reparei que estava triste, destituído de esperança. A voz pastosa de quem acordou e tomou cachaça no café da manhã. Confessou que tem muita saudade dos velhos tempos, quando amigos se encontravam pessoalmente.
O tempo nos afastou. O tempo e a globalização. Moramos em cidades, estados e países distantes. Deixamos de ser vilarejos.
Somos metrópoles virtuais com milhares de pessoas nos seguindo de longe.
Falta compartilhamento real, confiança, credibilidade.
Para corrigir isso andei retomando contato com quem julguei estar em débito. Na realidade, estamos todos com déficit de amor e solidariedade.
Eu poderia ter feito chamadas de vídeo para todos, mas esse hábito é muito invasivo. Dispersivo também.
Temos que lidar com o olhar do outro sobre a nossa cara e o nosso sobre a cara dele, interrompendo a atenção com pensamentos do tipo: nossa, fulano engordou! Meu Deus, como eu envelheci.
A espontaneidade se vai e a gente se perde nesses reparos inúteis.
Com a chamada só de áudio o outro relaxa (e a gente também), na escuridão da sala, no conforto da cama.
É quase como escrever cartas, um hábito que eu tinha e que adoraria resgatar.
Mandar um texto caprichado contando minhas notícias e pedir ao outro notícias dele.
Roer as unhas de ansiedade até o correio trazer a resposta. Isso é uma das coisas que se extinguiram em nosso tempo.
Restou-nos a maravilhosa invenção dos celulares e o alcance universal das ligações de vídeo, mensagens de voz e de texto.
O que não invalida nem substitui as visitas presenciais, que devem ser feitas sempre que possivel, mesmo tendo que atravessar estados e pagar pedágios, nesse país que não investe em transporte de massa e tem as passagens aéreas mais caras do mundo.
Amizade é ativo social e emocional e merece alguns sacrifícios.
Felizmente, setembro termina, trazendo promessa de chuva com a floração dos ipês brancos e a cantoria das cigarras.
Até já choveu aqui e ali, o que significa que, mais uma vez, escapamos.
Agradecida, prometo perseverar no hábito de fazer a ronda entre os que eu considero.
Ser um tipo de CVV que liga preventivamente. Afinal, setembro também foi amarelo. Mês de conscientização e de prevenção ao suicídio.
Manter a saúde mental nessa era de extremos tem sido um desafio para todos.
Telefonar para alguém que está se isolando pode ser a mão que o segura no exato instante em que ele não suporta mais o peso do mundo.
Leia também de Márcia Lage:
Apenas um engano médico ou falta de ética?
Um adeus, no rastro do pôr do sol
Um final de semana de tristezas e alegrias
Humildes guerreiras do povo, em permanente luta pela sobrevivência
Mudança climática é uma das razões de eu morar num esconderijo
A tragédia da velhice desassistida
Minhas preciosas quatro mudas de jacarandá da Bahia
Mais do que um legado, Sebastião Salgado deixa um exemplo
Aos 79, Marly decide voltar a viver na pequena cidade onde nasceu
Em busca de um programa de ecovilas para idosos
Cavalos e cavaleiros fazem a festa de Sâo Lázaro
A energia renovadora de uma criança alegre
O reencontro alegre e divertido de sete irmãs
Tecnologia é injusta com idosos e com quem tem poucos recursos
O fogo sagrado de Pentecostes me ungiu
Por que você tem que assistir ao filme “As Órfãs da Rainha”
Mulheres estão parando de dirigir depois dos 60
Com a idade, vida sexual não acaba? Quem disse?
Jardinagem como terapia e prevenção de doenças